COM O SONHO SE CHEGA À OBRA [1]
Maria Isabel Vieira Pereira
19 de Março de 2019
Com esta minha vetusta idade, bem podia estar toda entregue às malhinhas do tricot ou crochet e deixar o passado e as suas obras irem sendo contadas, escritas, consoante o seu conhecimento e até gostos pessoais e épocas. Ora, aconteceu eu ter sido voluntariamente cúmplice e envolvida na complexa teia de uma dessas obras antigas, social e educativa, e dela ter mesmo guardados os vários documentos da sua criação e diversificada evolução. Em Fevereiro de 1955, no âmbito da Liga Portuguesa da Profilaxia da Cegueira, era inaugurada oficialmente em Lisboa a primeira Clínica de Reeducação de Amblíopes. Foram seus fundadores o oftalmologista Henrique Moutinho, o psiquiatra João dos Santos e a psicóloga Maria Amália Borges, que aliás já trabalhava em colaboração com este último na área psico-social. Quem eram estes três licenciados, sonhadores e intervenientes na criação de uma sociedade mais justa? João dos Santos trabalhava no Hospital Júlio de Matos, dirigido na altura e durante muitos anos pelo Professor Barahona Fernandes. Foi proibido não só de ali trabalhar mas em todos os hospitais portugueses. Teve, por isso, de emigrar, já casado e pai, para França, onde ficou 5 anos. Henrique Moutinho, já com a sua clientela atendida no seu consultório, foi mobilizado para Angola, em guerra, como médico militar. Maria Amália e seu marido, com as suas licenciaturas terminadas, não lhes foi nunca permitido entrar no sistema oficial de ensino superior, tendo por isso conseguido trabalhar só no sistema particular. Maria Amália esteve mesmo detida dois meses em Caxias, por ter sido reconhecida como fazendo parte da associação que ajudava monetariamente as famílias dos nossos presos políticos. Naquela altura em Portugal, as crianças e jovens amblíopes, devido à sua fraca visão, eram encaminhados para os asilos de cegos onde ficavam internados, raparigas no António Feliciano de Castilho, em Campo de Ourique em Lisboa e rapazes no Branco Rodrigues, na linha de Cascais. Como na sua grande maioria eram oriundos de famílias carenciadas, o seu internamento nos asilos resolvia toda uma situação social e, os de famílias não carenciadas, faziam naquelas instituições apenas a sua escolaridade, continuando a viver em família. O facto de serem considerados desde cedo como cegos levava a que toda a sua vida fosse dentro dessa perspectiva, como verdadeiros cegos. Toda a sua escolaridade era feita com o sistema Braille, o ensino da música em piano, a visão não era estimulada, era anulada, perdendo cada vez mais capacidade visual, passando em muitos casos de amblíopes a cegos totais. Ora, acontecera que o Dr. Mário Moutinho, pai de Henrique Moutinho, tinha estado na Alemanha algum tempo e tomara conhecimento de uma total diferença de procedimentos científicos e sociais com os amblíopes. Naquele país, utilizavam sempre a visão que tinham, estimulando-a através de exercícios oftalmológicos, como toda a sua escolaridade era feita normalmente com livros de caracteres e imagens de maiores dimensões, cores vivas e uso de lentes nalguns casos. É fácil imaginarmos a vontade daquele pai oftalmologista em incentivar o seu filho e colega a iniciar e desenvolver aqui no nosso país uma obra que diminuía o número de indivíduos cegos, o que não é coisa de pouca importância! Juntar e entusiasmar os dois já citados colaboradores para uma obra tão importante não foi difícil, eles que carregavam o peso do sofrimento das injustiças por si vividas, pois que os seus objectivos de vida eram, em tudo, melhorar uma atrasada e injusta sociedade. A falta de espaço físico e de meios financeiros não os assustava nem impediu de avançarem para a realização daquela primeira obra no nosso país, pois para tudo contavam com as suas próprias capacidades de criar. Assim, Henrique Moutinho, sócio do Rotary Clube de Lisboa, conseguiu um donativo, com o que se adquiriu o indispensável mobiliário e equipamento, e que permitiu ainda um mês de estágio de Maria Amália nas classes de amblíopes de Paris. Maria Amália encarregou-se de toda a montagem para a inauguração oficial da primeira classe de amblíopes de Lisboa, do País, nas três salas que João dos Santos disponibilizou na cave do Colégio de que era sócio, hoje Colégio Claparède. A inauguração teve a presença de um representante oficial do Governo, que não deixou de chamar a atenção para o facto de um oftalmologista criar nas salas de uma cave uma unidade escolar para crianças que viam mal, algumas quase cegas. É-lhe respondido: “que assim acontecia por ser, na altura, a única possibilidade de se iniciar um trabalho de que se não vislumbrava semelhante iniciativa, mesmo oficial”. A faísca acendeu-se, o lume cresceu, não sem vários percalços no seu crescer, sempre pela falta de meios financeiros. Mas, os nossos poetas são boas traves para estes inovadores, quando escrevem: “O sonho comanda a vida” (António Gedeão) ou “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” (Fernando Pessoa). E nasceu, cresceu, diversificou-se, tornou-se: Obra Exemplar, rastilho para uma grande revolução no sistema educativo nacional quando ainda nem se falava da hoje tão badalada Escola Inclusiva. Hoje bem podemos afirmar que ela ali começou para continuar a afirmar-se. Mas, era evidente que aquelas instalações não eram convenientes e, sem meios financeiros para alugar um andar com condições, a inaugurada Clínica de Reeducação de Amblíopes teve que se ir adaptando aos espaços que lhe eram oferecidos gratuitamente. Passou então a funcionar numas salas independentes do Asilo António Feliciano de Castilho, onde antes tinha sido o consultório do Dr. Mário Moutinho. Já então se tratava de um rés-do-chão, com sala de aula, uma sala grande para receber as famílias, uma pequena cozinha onde os alunos almoçavam o que traziam de casa e a câmara escura própria de um consultório oftalmológico, o quarto onde dormia a professora de então (Maria Isabel), porque o que os fundadores e directores lhe pagavam não era suficiente para alugar um quarto. E ali passou a funcionar a classe do ensino primário para amblíopes, com o material indispensável ao emprego e estimulação da visão daqueles alunos, como por exemplo a Cartilha de João de Deus que usava já caracteres aumentados, ideia de Maria Amália em utilizá-la na nossa primeira clínica portuguesa de amblíopes. Entretanto, é criada em Lisboa a Fundação Raquel e Martin Sain, onde o Dr. Henrique Moutinho teve papel importante, pelo facto de ter tratado com êxito a esposa do grande rei do petróleo. Assim, deu então a conhecer ao Senhor Sain o que se estava a fazer pelas crianças amblíopes, entusiasmando-o para que a Fundação, alem de se dedicar a recuperar cegos adultos, passasse também a incluir crianças e jovens amblíopes e cegos, prontificando-se com os seus amigos e colaboradores a organizar estas unidades. Assim, é criada a Secção de Pré-Primária com a Prof. Cecília Menano a dirigir e Leonor Alvim como colaboradora, duas classes de Ensino Primário para amblíopes, à qual se juntam cegos, com Maria Amália a dirigir e as Prof Deline Martins e eu própria que desde a fundação trabalhava com os amblíopes e que tinha feito um estágio em Paris, nas classes oficiais de amblíopes, onde também já estivera Maria Amália. Esta nova estrutura da Fundação toma o nome de Centro Infantil Raquel e Martín Sain, que funcionou em duas casas, primeiro numa cave da Av. Óscar Monteiro Torres e depois na Av. D. Carlos, onde funcionavam todas as secções da Fundação. Este é o resultado da evolução, do desenvolvimento da pequena classe de amblíopes, inaugurada tão sem condições em Fevereiro de 1955. Já então os seus fundadores tinham bem presente que havia todo um caminho a percorrer para conseguir os grandes objectivos de integração de deficientes no ensino regular oficial. A Direcção da Fundação Sain teve a boa iniciativa de pedir ao Ministério da Educação a oficialização das classes do ensino primário, o que efectivamente acontece. Para exercerem as devidas funções as duas Professoras fizeram os necessários exames oficiais de Regente Escolar. Os alunos cegos iam aumentando, tudo corria bem, chegou-se mesmo a fazer uma exposição numa casa da Baixa, para divulgação do trabalho que ali se estava a fazer na educação e recuperação dos deficientes visuais. Mas dois anos depois a direcção da Fundação Sain não quis manter o Centro Infantil Raquel e Martin Sain e ficamos uma vez mais na rua. Desta vez foram os pais que se juntaram em protesto no Ministério da Educação exigindo escola para os filhos em idade escolar, cumprindo-se a lei oficial do país. Perante a justa exigência dos pais o Ministério da Educação dispensou duas salas numa escola oficial para os dois Postos Escolares oficiais e com esta mudança a classe infantil acabou. Mas estávamos ainda nos tempos em que deficientes não estudavam com os considerados não deficientes e houve na verdade rejeições a vários níveis e em todo o corpo docente da escola. Mas como disse logo ao princípio desta narrativa os seus criadores, orientadores, sabiam, cada vez melhor, que estavam a construir um futuro social e cientificamente certo e nenhuma dificuldade enfraquecia as suas vontades. João dos Santos e Henrique Moutinho convidam então Helen Keller para vir a Portugal, convite que ela aceita. Uma vez em Lisboa, mostram-lhe o que há já oito anos tinham criado e que ao longo desses anos foram desenvolvendo: escolaridade conjunta de crianças deficientes, cegas, e não deficientes. Helen Keller elogia fortemente este trabalho socialmente inovador que acabava com a segregação dos deficientes. Numa reunião com Azeredo Perdigão, na altura Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Helen Keller entusiasma-o a apoiar monetariamente, de forma significativa, tão importante obra social. É então deste modo, com uma boa quantia, que as classes escolares podem sair das instalações da escola oficial onde eram indesejadas. A Liga da Profilaxia da Cegueira, entidade que sempre tem patrocinado este trabalho ao longo destes anos difíceis, mas sempre visando o seu sucesso, aluga um prédio de três andares no Jardim Constantino que em justa homenagem passa a ter uma placa na frente do edifício onde se lê Centro Infantil Helen Keller, denominação que jamais deixou de ter, embora hoje seja diferente a sua finalidade. É com a nova denominação, no ano de 1962, naquele prédio do Jardim Constantino que se dá um grande salto na já nossa conhecida Instituição: volta a ter a secção do ensino pré-primário, que terminara quando saímos da Fundação Sain. Ficou responsável agora por este sector a Dra Rosalina Tainha com o apoio de Maria da Graça Barahona. O número de alunos sem deficiência aumentou muito e entre eles estavam os filhos de vários colegas de João dos Santos e de amigos destes, um seu neto e outros alunos do ensino primário, num grupo que funcionava em casa da Maria Amália, mas, tal como no Centro Infantil Helen Keller, seguindo as Técnicas Freinet. Este emprego das Técnicas Freinet deve-se ao estágio feito pela Professora Maria Isabel na escola Freinet em Vence (A.M.) com o próprio pedagogo francês Célestin Freinet. Este aumento de alunos levou o Ministério da Educação a passar os dois Postos Escolares a Escola, com a Professora Manuela Cruz e as já ali a exercerem Regentes Escolares. Nesta data entrou também para o Centro o Prof. Sérgio Niza que tinha sido expulso do ensino oficial e que se encontrava com dificuldade em trabalhar mesmo no ensino particular. No 2º andar funcionavam o gabinete médico com dois oftalmologistas (Drª Sílvia Azevedo e Dr Ribeiro da Silva), psicólogos (Drª Dora Bettencourt e Dr Coimbra de Matos) e pediatra (Drª Josefina Ramos). A direcção deste sector eram o Dr Henrique Moutinho e o Dr João dos Santos. Em Agosto de 1963 o Drª Maria Amália parte para o Canadá terminando a sua Direcção que durava desde a inauguração desta obra sócio-educativa. Deixa um relatório dos 8 anos da instituição da qual fora co-fundadora e, todo esse tempo, sua directora pedagógica. Este relatório foi publicado na revista Strabismus, em 1973, da Liga da Profilaxia da Cegueira. Nele indica para assumir a direcção a Drª Ana Maria Toscano Rico Bénard da Costa que já trabalhava no Centro Infantil Helen Keller com um grupo de alunos amblíopes, mas com fortes atrasos mentais. Ana Maria quis assim adquirir conhecimentos práticos dos diversos tipos de alunos da instituição. Maria Amália escreve no referido relatório considerar Ana Maria a pessoa com competência para continuar toda a orientação seguida até ali. Ana Maria fica na direcção dois anos lectivos em virtude de ter sido convidada então a organizar os primeiros cursos para professores de alunos com deficiência visual já que, até então, apenas existiam cursos para professores de alunos com deficiência intelectual, ministrados no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira. O então Centro Infantil Helen Keller deixa de funcionar no Jardim Constantino indo para um prédio apalaçado na Rua Monte Olivete. Na medida em que o sistema oficial vai tendo professores com preparação especializada, vai evoluindo e pouco a pouco os alunos cegos vão frequentando o ensino regular oficial. Por esta razão aquela instituição tão aberta às necessidades dos tempos sente que é altura de atender cada vez mais multideficientes. Assim, um grupo se organizou atendido pela Educadora, Eugénia dos Reis, com preparação para um trabalho especial com este tipo de alunos. Também para jovens com menos capacidades, que escolarmente pouco além iam do ler e escrever, foi criado um atendimento pré-profissional onde trabalhavam em várias ocupações e com diferentes materiais. Chegaram mesmo a trabalhar em ligação com empresas, para quem faziam embalagens de diversos objectos e que lhes pagavam o trabalho executado. Finalmente o Centro Infantil Helen Keller passa definitivamente para os terrenos facilitados pela Câmara de Lisboa, na zona do Restelo, onde são construídas as primeiras edificações pré-fabricadas. Neste despretensioso relato, procurei dar a conhecer o sonho e a valiosa obra tão mal-entendida nas dificuldades passadas pelos seus criadores, Henrique Moutinho, João dos Santos e Maria Amália Borges, a fim de a levarem ao final feliz, que em muito contribuiu para a evolução do sistema português de educação oficial. Aos Drs Paula Santos Lobo e Luís Grijó dos Santos, com o sempre presente sentimento de gratidão por tudo o que recebi do vosso pai, deixo-vos este relato absolutamente inédito. Maria Isabel Vieira Pereira 19 de Março de 2019
© 2013-2024 joaodossantos.net. Todos os Direitos Reservados/All RightsReserved.


Patrícia Helena Carvalho Holanda, Linha História e Educação Comparada da Universidade Federal do Ceará


















