João dos Santos e a Saúde Mental Infantil*

M Mendonca MEDIUM
M. Manuela de Mendonça**
Psiquiatra e Neuropsiquiatra Infantil
3 de Maio de 2001 

Vou falar-vos de um médico, ou melhor, de uma figura polivalente da medicina portuguesa que viveu entre 1913 e 1987 – João dos Santos. Talvez não muito conhecido em Coimbra, ele fará parte, sem dúvida, da História da Psiquiatria portuguesa, se mais não for, pela valiosa contribuição que deu ao conhecimento da vida mental infantil. O seu objecto de estudo foi esse – a mente humana, muito particularmente no período da infãncia. À maneira do artista, nela soube encontrar novos ângulos de visão e de interpretação. Introduziu e desenvolveu, no nosso país, novas metodologias de observação da criança, de compreensão, de análise psicopatológica, de tratamento e, essencialmente, de prevenção.

João dos Santos foi um homem de vontade férrea, um pensador-filósofo, capaz de intuir verdades e conceitos muito para além do seu próprio tempo; foi também um investigador-nato, usando intuitivamente uma metodologia científica que o conduzia com segurança da observação à hipótese, desta à experimentação e à conceptualização.

Deve-se-lhe, em grande parte, o reconhecimento pela Ordem dos Médicos da especialidade de Neuropsiquiatria Infantil, posteriormente designada por Pedopsiquiatria e por Psiquiatria da Infância e Adolescência. Deve-se-lhe a primeira instituição estatal vocacionada para a Saúde Mental Infantil, da qual foi organizador e director. Deixou uma obra escrita, plena de originalidade e profunda sabedoria.

Fez Escola ao longo da segunda metade do século XX, formando algumas gerações de discípulos, não só médicos.

João dos Santos foi, também, um sonhador. Tinha um lema na vida: proporcionar a todas as crianças as condições ideais de pleno desenvolvimento, para que fossem verdadeiramente saudáveis e felizes, garantindo por essa via a Saúde Mental do Homem. Fez tudo o que humanamente lhe foi possível para se aproximar daquele ideal. A ele dedicou toda a sua vida; sofreu incompreensões e perdeu algumas batalhas.

O optimismo e a esperança persistiram, porém, até ao fim, e, em 84 diria numa entrevista: “um dia as pessoas hão-de compreender!”

Orgulho-me de ter feito parte do primeiro grupo de discípulos seus, que com ele viveu, ensaiou e criou os alicerces do que viria a ser a sua obra em prol da Saúde Mental Infantil.

E, porque a sua Obra foi o corolário permanente da sua vida e circunstância, passarei a recordar quem era João dos Santos e como tudo começou.

João Augusto dos Santos nasceu em Lisboa, junto à Igreja dos Anjos.

Filho único de um casal modesto, cresceu rodeado de tias e tios, de amigos dos pais, no culto do ar livre, da natureza, do campismo, do desporto, que, seu pai, desde cedo lhe incutiu.

Tinha orgulho desse pai alfaiate, homem bom e simples, de quem herdou o gosto de viver, de descobrir e saborear os pequenos prazeres da vida. A sua faceta de educador sensato, companheiro compreensivo e liberal viria de certo a incutir no filho determinados aspectos da sua personalidade e comportamento face à criança.

De seu pai e tios herdou, também, o culto da liberdade e da luta política por esse ideal, ao qual dedicou grande parte da vida.

Viveu uma infância livre e solta, como avezita treinando o voo. Na rua, com os garotos do bairro, naquela Lisboa pacata dos pregões, dos rebanhos atravessando saltitantes as ruas da cidade, teve a primeira escola da vida – a do senso prático, do saber de experiência feito – a que sempre daria a maior importância nas suas concepções pedagógicas futuras. Ai exercitou a fantasia e a poderosa criatividade que tão úteis lhe viriam a ser.

A escola trouxe-lhe os primeiros problemas. Era disléxico, mas, ao tempo, ninguém sabia o que isso era; o facto valeu-lhe castigos e epítetos de mandrião, de cábula… e outros. E deixou-lhe uma recordação indelével da incompreensão e da rigidez dos métodos de ensino de que fora alvo. Na verdade, ao seguirmos a sua trajectória vivencial e profissional, encontramos bem definidas e constantes duas coordenadas básicas — a preocupação da auto-análise e compreensão de si próprio; a preocupação pela reformulação da metodologia pedagógica e pelo bem-estar da criança.

Diria mais tarde: (…) “a minha problemática escolar foi certamente o factor dinamizador do meu interesse pela educação e pela pedagogia” (…)

Cursou o Liceu Gil Vicente, no velho Mosteiro de S. Vicente de Fora, junto à Feira da Ladra. A rua continuava a ser a sua fonte preferida do conhecimento, da observação da vida, das várias vidas de que se foi apercebendo como adolescente e jovem, ao percorrer os bairros vizinhos do liceu – a Alfama e a Mouraria – com as suas figuras típicas e formas particulares de relação.

Não havia segredos para ele, no seu pequeno mundo citadino que procurava alargar, observar, curioso das pessoas, das suas diferenças, de tudo o que se passava entre elas, dos meios variados, outros tantos cenários de cada forma de viver. Foram depois o Chiado, o Rossio, os cafés e cinemas da Baixa, o seu local de observação e prazer.

Procurava aprender por si próprio aquilo que verdadeiramente lhe interessava. Criou a sua tertúlia jovem de leitura e discussão; gostava de se relacionar com pessoas mais velhas, de saberes variados, que escutava e observava atentamente. Falava pouco e ouvia muito.

Um dia escreveu: “Os meus Mestres, encontrei-os na Vida, e, alguns, na Escola”.

Iniciou a vida profissional como professor de educação física, diplomado pelo respectivo Instituto. Nessa qualidade trabalhou também com crianças dos bairros pobres de Lisboa e colaborou na reeducação de crianças com problemas de desenvolvimento. O gosto de trabalhar com crianças perturbadas cresceu nele. Tornou-se vocação.

Na procura de compreender melhor o que se passava com elas, decidiu ser médico, tendo-se licenciado em medicina em 1939.

Concluiria, após o curso, que os conhecimentos nele adquiridos sobre a patologia orgãnica não o tinham esclarecido sobre a totalidade das perturbações infantis, algumas das quais continuavam envoltas num manto de mistério.

Falava-se já, nesse tempo, em Portugal, em Psiquiatria Infantil, como ciência de além fronteiras, divulgada entre nós por Victor Fontes, curiosamente, o professor de anatomia descritiva da Faculdade de Medicina de Lisboa.

Na verdade, Victor Fontes nutria particular interesse pelo estudo, assistência e pedagogia das “Crianças Anormais”, como ele próprio as designou genericamente, num curioso livro de sua autoria assim intitulado.

Discípulo de António Aurélio da Costa Ferreira, Victor Fontes herdara a direcção do Instituto Médico-Pedagógico por ele criado na Casa Pia e que viria a ter o seu nome. Foi a primeira instituição do país onde se tomou possível o estudo da patologia mental infantil.

Sob a Direcção de Victor Fontes, internacionalmente conhecido como Psiquiatra da Infância de grande prestígio, o Instituto António Aurélio da Costa Ferreira viria a adquirir grande desenvolvimento e projecção, através duma organização cuidada, duma biblioteca especializada, única no país, e da edição do seu boletim – uma revista de muito bom nível científico intitulada A Criança Portuguesa – de divulgação e permuta internacionais.

Funcionou como viveiro da geração mais antiga de psiquiatras da infância portugueses, muito anteriores à criação da respectiva especialidade. Por ali passaram figuras de relevo de entre as quais merecem destaque Alice de Melo Tavares, fundadora da Associação de Pais e Amigos das Crianças Diminuídas Mentais e Schneeberger de Athayde, autor de um pequeno Tratado de Psiquiatria da criança e do Adolescente, e que viria a ser o primeiro doutorado nesta área. Ali se fazia, também, a formação dos professores do chamado ensino especial.

Foi neste instituto que João dos Santos se iniciou no estudo da criança, sob a orientação de Victor Fontes, em 1940.

Valorizava-se nesse estudo, essencialmente a vertente médica dos comportamentos anormais infantis, cuja origem se procurava em factores hereditários e congénitos, nas chamadas “degenerescências”, nas causas tóxicas, endócrinas, infecciosas (a sífilis, a heredo-sífilis, as encefalites e meningites, etc.). Sempre situações sem francas possibilidades terapêuticas e cuja solução possível se centrava no ensino especial, continuando a tradição da médico-pedagogia do século XIX.

João dos Santos preparava-se simultaneamente em Neuropsiquiatria, na Clínica Universitária (funcionando ainda no Manicómio Bombarda). Os conhecimentos adquiridos através da ampla visão de Sobral Cid, valorizando já aspectos psicológicos, não se coadunavam com as limitações impostas por aquela forma de abordagem da criança perturbada.

Imaginava outras formas de observação e de investigação que o conduzissem à compreensão e origem dos sintomas. Deixou o Instituto António Aurélio passados poucos anos, e optou decididamente pelo estudo da Psiquiatria.

No recém criado Hospital Júlio de Matos, como colaborador de Barahona Fernandes, muito contribuiu para o trabalho exemplar de organização e diferenciação clínica e terapêutica que elevaram aquele Hospital à posição cimeira entre os hospitais psiquiátricos da Península.

Dadas as suas preferências, foi encarregado pelo director – António Flores – de organizar os dois pavilhões infantis.

Conheceu então os meandros da assistência psiquiátrica nacional e as suas lacunas em relação às crianças; nada fora planificado para elas além dos referidos pavilhões no novo Hospital, destinados a asilar as mais perturbadas, em geral com debilidades profundas e grandes agitações. João dos Santos, impotente para obviar esta situação, procurava fora do Hospital contactar com outras crianças cujas perturbações não estivessem tão tragicamente evoluídas, para as estudar e tentar actuações terapêuticas em fases mais precoces.

Trabalhou como voluntário no asilo de S. João, na escola – oficina n° 1, com crianças difíceis dos bairros da Graça e de Alfama, num acumular constante de experiência.

Entretanto, participava em grupos de estudo variados, um dos quais, com Alberto Candeias, Vitorino Nemésio, Flávio Resende e outros, visava o estudo do Ensino de então, e o projecto da sua reforma. Havia nele, além da posição médica, um empenhamento político profundo que o impulsionava à crítica e à mudança das Instituições destinadas à criança, tanto as de assistência como as de educação, procurando não só modificá-las, mas também torná-las acessíveis a todas, democratizá-las, como costumava dizer.

Esse tipo de empenhamento veio a ser decisivo na sua vida. Em 1946, por motivos políticos, foi impedido de exercer funções públicas e de frequentar qualquer hospital português.

Decidiu ir para Paris. Por intermédio de amigos, teve acesso a Henry Wallon — o grande investigador em psicologia genética. Foi seu discípulo, amigo e colaborador, durante alguns anos, no seu Laboratório de Biopsicologia. Posteriormente viria a trabalhar, também como investigador, com Jean Delay, no Centro de Pesquisas Científicas.

Adquiriu experiência clínica com psiquiatras da craveira de J. de Ajuriaguerra e Henry Ey; em psicopedagogia com André Berge. Trabalhou em psiquiatria infantil, já organizada em Paris, com George Heuyer — o primeiro professor de psiquiatria infantil da Faculdade de Medicina de Paris. Entre os discípulos de Heuyer contavam-se alguns dos nomes hoje consagrados, como René Diatkine e Serge Lebovici – o primeiro psicanalista infantil de França.

Com todos João dos Santos estabeleceu sólidas e duradouras amizades. Em boa verdade, conheceu e conviveu com todos os valores franceses da época, significativos nas áreas que lhe interessava dominar: psiquiatria, pedopsiquiatria, psicologia, psicanálise, pedagogia.

Paris veio a ser a Escola que ambicionava e o seu país lhe não pudera oferecer. Ali encontrou as condições ideais a sua forma de aprender, em liberdade de escolha e de pensamento, em permanente diálogo com amigos.

Iniciou também a sua análise didática, tendo sido o primeiro português a lançar-se nessa “aventura”. A partir de então, o seu interesse pela psicanálise perdurou para sempre, impregnando as suas atitudes e a formação de todos os seus discípulos, mesmo daqueles que a não seguiram como orientação exclusiva.

Paris abriu-lhe ainda novos horizontes no domínio da arte e da literatura, pondo-o em contacto com intelectuais e artistas de outros países, de ideais políticos comuns.

João dos Santos, grande comunicador, sabia como ninguém, extrair do diálogo prazer e proveito, reflectindo e interiorizando constantemente as novas aquisições que, ciosa e laboriosamente, introduzia na edificação do seu próprio Eu.

Quando regressou ao Hospital Júlio de Matos, em 1950, era portador duma experiência riquíssima na abordagem polivalente da criança, na utilização de novos métodos de observação de cariz psicanalítico e na formulação de novas hipóteses etiopatogénicas. O pós-guerra em Paris proporcionara-lhe um verdadeiro manancial de situações traumáticas para a criança, cujo estudo se revelara significativo em relação a muitos e variados factores potencialmente perturbadores. Tinha ultrapassado definitivamente as antigas pesquisas feitas no Instituto António Aurélio, bem como as práticas pedagógicas ali aprendidas. (…) [continuar a ler o texto]

 


* Conferência proferida na Ordem dos Médicos (Secção Regional Centro), incluída no Ciclo de Conferências “Medicina, Cultura e Sociedade”, organização conjunta daquela Secção e do Grupo de História e Sociologia da Ciência do CEIS 20. (3 de Maio de 2001)
 
** Dra. M. Manuela de Mendonça
Psiquiatra e Neuropsiquiatra Infantil
 
 
 
 
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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

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