
O costume consagrou o termo “médico – pedagógico” quando nos pretendemos referir a algo que tem implicações tanto ao nível da perturbação das funções do corpo (incluindo o comportamento) como ao seu enquadramento educacional. Dá-se primazia ao “médico” porque existe a convicção que é este o aspeto principal e que condiciona e mesmo determina as opções que irão ser tomadas a nível pedagógico.
Na minha opinião, João dos Santos não seguiu uma abordagem médico pedagógica mas sim pedagógico-médica. Claro que o campo em que a sua atividade teve maior dimensão e reconhecimento foi no campo da Pedopsiquiatria – ela própria uma especialidade médica. Mas… é preciso relembrar que a primeira formação profissional de João dos Santos foi como professor de Educação Física (e isto explica parcialmente a atribuição do doutoramento honoris causa pela Faculdade de Motricidade Humana). João dos Santos partiu da pedagogia para a medicina e talvez, esteja aqui uma das chaves para entender a originalidade do seu olhar e a abrangência da sua conceção sobre a criança.
O meu contacto com João dos Santos não foi muito frequente (ou, pelo menos, eu gostaria que tivesse sido mais…) mas cumpre-me evocar aqui três momentos deste contato que desempenharam um papel de luzes diretoras no meu percurso como professor de Educação Especial.
1. Quando estava no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira (IAACF) a tirar meu curso de professor de Educação Especial, na altura com a duração de três anos letivos, tive que enfrentar o desafio de fazer um estágio “no terreno”. Na altura existiam no IAACF duas equipas de pedopsiquiatria e uma delas tinha convidado João dos Santos para atender semanalmente casos de famílias e crianças que recorriam ao serviço. Pedi – e foi-me concedido – que a assistência a estas consultas e estudos fosse considerada o meu estágio. E assim, durante um ano letivo, assisti semanalmente às consultas que João dos Santos dava a crianças e às suas famílias. Tenho inúmeras histórias que poderia contar, mas lembro-me de uma delas. Uma criança entrou desarvorada no gabinete e ignorando João dos Santos que a tinha ido receber à porta, sentou-se ostensivamente na sua cadeira. Todos ficámos a pensar o que se iria passar… João dos Santos aproximou-se da criança com uma atitude muito calma e disse-lhe firmemente: “Sai daí!”. “Porquê?” – perguntou a criança. “Muito simples – respondeu João dos Santos – essa é a minha cadeira e a tua é ali: e eu não falo contigo enquanto não te sentares lá!”. A criança levantou-se e a conversa estabeleceu-se. João dos Santos comentou mais tarde “Esta criança estava a suplicar que eu lhe dissesse qual era o seu lugar e foi isso que eu fiz”.
2. Numa das raras visitas que fiz à sua idílica casa de Sintra – na Horta do Arrabalde – apertei-lhe a mão ao chegar e perguntei: “Então? Como está?”. E ele respondeu “Estou bem mas sabe? Não conseguimos encorrilhar a testa e sorrir ao mesmo tempo. Já experimentou?” (Eu tento até hoje fazer esta habilidade sem resultado…). “Ultimamente – prosseguiu – tenho franzido a testa demais o que me tem tirado tempo para sorrir”.
3. No dia em que recebeu o Doutoramento Honoris Causa pela Universidade Técnica de Lisboa, recebi-o à entrada e, dada a preocupação com a sua saúde na altura um pouco abalada, tive a preocupação em o instalar confortavelmente enquanto não começava a cerimónia. Perguntei-lhe como era regressar depois de tantos anos ao mundo da Educação Física. Com um ar desprendido e óbvio ele respondeu-me que tinha persistentemente tentado ensinar que a aprendizagem da matemática está no corpo e que, no geral, todas as aprendizagens passam pela emoção e pela corporeidade. “Leu os meus artigos n”O Jornal da Educação?”. (Eu venerava essas peças de sabedoria…). E logo me falou de múltiplos exemplos que lhe tinham sido inspirados pelo seu mestre Henri Wallon.
São estes três flashes do contato com um homem que entendeu – e depois nos ensinou – que a criança não é um diagnóstico que se ensina. É antes de tudo um ser humano de quem, no trânsito da sua vida, nos precisamos de aproximar com respeito e com empatia.
Falta só no meu testemunho, assegurar que João dos Santos era um homem atento e perspicaz. A humanidade e o compromisso social com que tratava os outros era fruto deste olhar profundamente solidário e cúmplice. Mesmo quando parecia distanciado e até óbvio o seu olhar era sempre comprometido e profundo.
João dos Santos muito ensinou às duas classes profissionais que exerceu: aos professores ensinou-lhes a complexidade da aprendizagem e de como os afetos são centrais para aprender; aos médicos ensinou a urgência de um olhar pedagógico e sobretudo de um modelo que ultrapassasse o “diagnóstico – prescrição” para abraçar uma visão processual, evolutiva, interactiva, enfim, educacional da criança.
Não fui, infelizmente, um discípulo assíduo de João dos Santos, mas sempre que dele me aproximei senti que o seu semblante, a sua atitude, as suas palavras e o seu exemplo constituíam a mais fina e profunda inspiração para eu (me) poder entender o mundo da criança.
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