
Era o ano de 1978 quando ingressei no então Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa, instituição fundada e dirigida por João dos Santos, mais precisamente, na Clínica Infantil (um dos serviços do referido Centro) situada no Hospital psiquiátrico Júlio de Matos, hoje denominado “Parque de Saúde de Lisboa”.
A Clínica Infantil era dirigida pela Dra. Margarida Mendo. Foi ela que me apresentou o Dr. João dos Santos. Recordo-me desse momento, era muito novo, tenho a impressão que se ouviam as pernas tremerem nesse momento, bem como o batimento do coração acelerado. Olhou para mim, sorriu, apertou-me a mão e disse: – Então podemo-nos tratar por tu porque eu também sou Professor de Educação Física. Sorri, acho que pasmei e devo ter proferido alguns vocábulos parecidos com palavras. Claro que não tive a coragem de usar tal tratamento, não tive a ousadia, mas ele tratava-me desse modo e eu sentia um certo orgulho nisso, sentia-me talvez mais próximo, mais familiar.
Nessa época os Professores de Educação Física tinham o hábito de se tratarem por “tu” mesmo que não se conhecessem pessoalmente, penso que seria por sermos poucos, ou por alguma solidariedade pois os professores de Educação Física eram vistos como outros professores, talvez menos importantes que os outros, das ditas disciplinas de estudo.
Comecei a exercer na Clínica Infantil e durante os dois, três primeiros anos “tinha” de assistir aos seminários clínicos que João dos Santos fazia semanalmente em Lisboa; à quarta-feira era numa das equipas do Centro, à terça era no Colégio Eduardo Claparède, à sexta no COOMP (Centro de Observação e Orientação Médico-pedagógico), indicação que Margarida Mendo e João dos Santos deram e eu cumpria com imenso prazer.
Sentia no seu olhar, uma pessoa serena e interessada, que procurava na outra pessoa conhecer mais e com uma tranquilidade límpida, que nos transmitia um sentimento de sossego recíproco.
Há uns anos atrás (1991) pediram-me um artigo sobre João dos Santos. Era uma revista intitulada Cadernos de Infância editada pela Escola Superior de Educação de Lisboa. Intitulei esse artigo “Um Mestre que Marcou muitos Mestres”. A razão pelo que reeditei o mesmo título nestas linhas foi pelo fato de realçar que o seu legado está à vista: a maioria das referências da atualidade foram seus discípulos.
A importância da qualidade da relação – falar sem utilizar termos técnicos
Nas discussões de casos clínicos o que ele se interessava era como o técnico estabelecia e orientava a relação. Por vezes, nas descrições das sessões dizíamos coisas como; “esta criança parece psicótica” ou “está deprimida” e João dos Santos que privilegiava o discurso espontâneo dizia: “O que quer dizer com isso? Explique melhor.”
Precursor da psicomotricidade em Portugal
João dos Santos foi discípulo de Wallon e Margarida Mendo foi aluna de Ajuriaguerra; estes autores foram primordiais e pioneiros na construção da profissão de Psicomotricista. Wallon com o seu contributo mais conhecido, o livro “Do acto ao Pensamento” pode-se ler que “o tónus muscular está intimamente ligado à emoção”, e “o movimento é o primeiro instrumento do psiquismo”; Ajuriaguerra por seu lado, elaborou o exame psicomotor e organizou as síndromes psicomotoras.
A Psicomotricidade em Portugal teve as suas primeiras aventuras pelas mãos de João dos Santos e de Margarida Mendo, foram eles que fizeram os primeiros exames psicomotores.
Na altura quando foi introduzida em Portugal, a psicomotricidade só tinha uma vertente, a da intervenção em saúde mental infantil. Portanto era uma psicomotricidade de âmbito clínico e sobretudo Relacional.
Quem chamou a si a Psicomotricidade foram os Professores de Educação Física e, pelo que se passou a seguir, percebemos que não sabiam nem o conceito nem o objetivo e assim desvirtuaram a Psicomotricidade pensando que ela era um ramo da Educação Física.
Estavam profundamente enganados e ainda hoje há alguns grupos que alimentam esse equívoco e confundem Psicomotricidade com Atividade Motora Adaptada que faz parte das ciências do desporto, mas este equívoco sustenta a ambiguidade.
Não é por acaso que em França, como se sabe foi o berço da psicomotricidade e onde ela é vista predominantemente pelo aspeto clínico, nesta altura estão a falar da psicomotricidade na neurologia, como é que a psicomotricidade pode contribuir para minimizar a dor crónica, com a doença de Parkinson, com a doença de alzheimer, com os cuidados paliativos.
Em França há o pleno emprego para os Psicomotricistas, em Portugal, muitos potenciais empregadores não conhecem o que é a psicomotricidade.
Com João dos Santos aprendi muito, como lidar com o nosso corpo numa relação terapêutica, a respeitar a dignidade da criança, a surpreender positivamente a criança a inventar situações, a usar a criatividade, a apreender o sentido estético na relação, a lidar com o silêncio quer como forma de comunicação, quer como reflexão; na luta contra a omnipotência do terapeuta, a respeitar outras ideias e convicções dos outros. Obviamente que estamos a falar da atitude do terapeuta.
O seu modelo de reuniões clínicas semanais na equipa foi crucial na formação de técnicos. Aqueles que tiveram esse privilégio, hoje são referências como já foi dito. Estamos a falar sobre as reuniões multidisciplinares: de formação, de apresentação de caso clínico, de organização e de síntese. Essas reuniões clínicas foram o eixo da minha formação em saúde mental infantil. O entrecruzamento dos diferentes saberes dos colegas pluriprofissionais, expondo a suas ideias, numa posição de parceria e de partilha com o sentimento de que estamos todos na mesma plataforma, dava a cada um de nós, um significado especial de responsabilidade e um enriquecimento extraordinário.
A sua generosidade não tinha limites
Um dia João dos Santos foi assistir a uma comunicação minha no ISEF (Instituto Superior de Educação Física), atual Faculdade de Motricidade Humana. Entre outras coisas que disse, revelei uma grande descoberta que tinha concluído, seria qualquer coisa parecida com “ para observar uma criança é preciso antes do mais o observador deixar-se observar pela criança porque senão, a criança sente-se observada e em consequência a observação será enviesada. À medida que se relacionam o observador e a criança, vão revelando as suas competências e as suas dificuldades.”
No dia seguinte era a sua vez de conferenciar, tratava-se da conferência magistral e no seu discurso, ele referencia-me dando importância às minhas ideias sobre a observação. Mais tarde vim a ler coisas escritas por ele e apercebi-me de que ele já tinha dito aquelas coisas talvez uns vinte anos antes. Era de uma humildade gigantesca e de uma generosidade ímpar.
Sedimentámos uma relação de amizade profícua que ultrapassou a relação de Diretor para funcionário.
Partilhávamos alguns interesses designadamente o gosto pelo cinema. Durante anos fui coorganizador de um festival de cinema cuja temática especializada era a infância e juventude na cidade de Tomar. João dos Santos foi um convidado de honra habitual, participou em todos os festivais realizados, algumas vezes fazia-se acompanhar com os seus netos. Colaborava com a participação em conferências e conversas que chamavam muitas pessoas para o ver e ouvir. Era um excelente contador de histórias, ficávamos presos com elas, faziam-se muitas vezes silêncios, eram silêncios pensantes porque ficávamos a pensar nas nossas coisas.
Como sabemos foi-lhe atribuído o grau de Doutor “Honoris Causa” pela Faculdade de Motricidade Humana; no dia seguinte podia-se ler no jornal “Diário de Noticias” que João Costa tinha sido galardoado com a referida distinção, aquele lapso valeu uma série de comédias e trocadilhos entre nós.
Para terminar este apontamento devo dizer que não sinto saudades nenhumas daqueles tempos; expressões como “aqueles tempos é que eram bons”, como alguns dizem, não concordo. Considero que os bons tempos são sempre os do presente, embora o que estamos a atravessar atualmente não seja nada digno, mas isso é outro assunto. Guardo sim boas memórias e as que melhor recordo são o prazer com que fazíamos as coisas. Sentíamos que João dos Santos tinha imenso prazer nos projetos em que se metia, e contaminava-nos com o seu entusiasmo.
Lisboa 18 de junho de 2013
João Costa
© 2013 joaodossantos.net. Todos os Direitos Reservados / All Rights Reserved.