Memórias de João dos Santos. Breves notas impressionistas.

Isabel Margarida Pereira MEDIUMIsabel Margarida Pereira
Psicóloga Clínica. Psicanalista (S.P.P.)
10 de Junho 2013

Durante a infância e adolescência, de quando em vez, a propósito de crianças minhas contemporâneas que tinham atravessado alguma fase mais atribulada, ouvia referir o nome de um médico em Lisboa que sabia conversar com as crianças e que, de um modo quase “mágico”, conseguia inverter o rumo de um destino traçado.

Já nos finais da adolescência conheci alguém que consultara João dos Santos e que me transmitiu desse Homem uma imagem a um tempo, benévola e surpreendente.

Nesses tempos desconhecia o rumo que tomaria a minha vida profissional e a Psicologia só se evidenciara como possibilidade depois de um período em que fizera minhas as palavras de Paul Nizan “ Eu tinha 20 anos. Não consentirei que ninguém diga que é a idade mais bela da vida”.

Assim o nome de João dos Santos constituíra-se ao longo desses anos como um porto potencial de muitos ensinamentos no que à criança dizia respeito, mas que não colocara como meu horizonte.

Foi no meu estágio profissional numa equipa de adultos – Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Sta. Maria – equipa então chefiada por João França de Sousa, que tive conhecimento da existência de um Seminário semanal de Observação e discussão de casos clínicos, dirigido por João dos Santos.

Não foi fácil para mim essa primeira abordagem de João dos Santos, já que o envolvera numa auréola de mistério e sabedoria, que receei não conseguir aceder.

Na nossa primeira conversa percebi que exigia como critério de admissão uma experiência profissional de pelo menos um ano.

Dado esse 1º passo, no ano seguinte tive então a “luz verde” para frequentar aquelas “aulas” de comunicação com o outro.

Se procurar caracterizar os aspectos essenciais do impacto dessa aprendizagem através de substantivos, referirei: turbulência, surpresa, encantamento, admiração, crescimento.

Qualquer entrevista conduzida por João dos Santos, quer o paciente fosse mais jovem ou mais velho, evidenciava uma imensa naturalidade e humanidade nesse encontro com o Outro. Não estava ali o Psiquiatra, artilhado de hipóteses diagnósticas, mas o Homem com a sua experiência de vida e com a encantadora capacidade de identificação com o sofrimento daquela pessoa, homem ou mulher, jovem ou idoso.

Esse Seminário era frequentado, na sua maioria por jovens internos de Psiquiatria que, de um modo geral, tinham já uma formação substancial. Os Psicólogos nos serviços de Psiquiatria eram escassos nesses tempos.

Após a entrevista com o doente seguia-se o período de discussão do caso.

Se na Observação do doente João dos Santos nos mostrara esse seu dom de conversar com o Outro, na discussão do caso, confrontava-nos com os nossos sistemas defensivos que, se muniam de “diagnósticos”, que eram usados como “separadores” relativamente à doença mental, sempre tão amedrontadora.

João dos Santos não só nos fazia despir os casacos e gabardinas durante o período de Observação do doente, como nos despojava das nossas “armaduras” de um suposto saber feito, para olharmos “olhos nos olhos” a “escrita” do nosso coração, as nossas simpatias e antipatias…Falava-se de contratransferência sem a chamar pelo nome… Esse exercício maior – e tão difícil também já que implicava uma certa auto-exposição -, foi um instrumento essencial a todo o trabalho clínico que mais tarde vim a desenvolver.

Outro elemento de grande importância que João dos Santos trabalhava com estes seus aprendizes era o desenvolvimento da capacidade de fantasiar a partir dos elementos colhidos nas entrevistas ou no nosso sentir. Diria que estava a lançar as sementes do pensamento associativo e da atenção flutuante.

No final de cada Seminário, tanto quanto consigo recordar, sentia-me sempre surpreendida pelas hipóteses que se estruturavam relativamente a cada caso e aos seus antecedentes.

Esta surpresa e fascínio vieram a ter continuidade quando, mais tarde, já no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa pude assistir, infelizmente durante pouco tempo, à Observação de casos de crianças, realizadas periodicamente na Clínica Infantil e na supervisão de Equipa.

Se esta aprendizagem por si só me teria enriquecido imenso, a metodologia de trabalho em grupo – onde todas as intervenções eram respeitadas e valorizadas – que colhi tanto nesse Seminário como na forma como França de Sousa (ele também discípulo de João dos Santos) trabalhava na sua equipa, trouxeram-me um modo de estar como formadora que se inspirou nessa poderosa simplicidade e respeito pelo Outro.

A minha aprendizagem com João dos Santos não se fechou com a sua aposentação em 1983. Ela foi perpetuada através de todos aqueles que com ele tinham privado e crescido, sendo no meu caso, no que à criança se refere, sobretudo, Teresa Ferreira.

Nesse período que decorreu de 1980 a 1987, o meu conhecimento de João dos Santos foi-se fazendo também de algumas animadas confraternizações (o famoso “Velho Mirante” onde se comemorava, numa jantarada, o final de um ano de Seminário, um ou outro almoço no “Papagaio” à João Penha), uma viagem a Coimbra, onde foi discutido (no consultório de Amaral Dias) o Rapport sobre a Neurose de Angústia que iria ser apresentado ao Congresso de Línguas Românicas em Portugal, e alguns encontros pessoais. Esses diferentes momentos foram-me sempre confirmando a Humanidade do Homem que era João dos Santos, aliada a um imenso prazer de viver.

A Saúde Mental Infantil em Portugal é pois inseparável desse pilar essencial que foi João dos Santos.

Nestas três décadas de vida profissional vi em muitos momentos o desviar do rumo dos fundamentos lançados por João dos Santos, no que à saúde mental da criança diz respeito. As exigências quantitativas dos tempos que atravessamos, aliadas à descapitalização do Sujeito como Ser subjectivo, têm em muito contribuído para um incremento da medicação das crianças em detrimento do seu entendimento. A médio/longo prazo assistiremos aos resultados nefastos desta política com um aumento significativo da doença mental na adolescência e na vida adulta.

Termino esta evocação breve de João dos Santos, fazendo votos de que as comemorações do seu centenário alimentem e animem o desejo em todos os que trabalham em saúde mental, sobretudo às gerações mais novas, a integrarem na sua prática o pensamento e a prática do Mestre. Só assim a Saúde Mental da Criança poderá prosseguir numa evolução e transformação que respeitem o indivíduo, a sua subjectividade e as suas circunstâncias bem como o tempo necessário ao seu desenvolvimento.

Terminaria com as palavras de João dos Santos: “na sua caminhada o Homem encontra umas vezes um sentido espiritual e construtivo, outras, perde-se em vias distorcidas que conduzem à destruição”.

 
Lisboa, 10 de Junho de 2013


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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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