Saber e sabedoria: a arte de educar

 
Silvia Madeira MEDIUMDra. Sílvia Madeira
Psicóloga Clínica, Professora Adjunta na Escola Superior de Educação de Santarém
Novembro de 2013 *
“Ninguém ensina ninguém. Cada um aprende com o que
lhe é fornecido pelo ambiente natural e humano.
A pedagogia nasce com o registo da cultura, a didáctica
básica é a narrativa ou o conto, oral ou escrito, ouvido,
participado, reproduzido”

João dos Santos (1983), p. 154

Esta é uma frase que pode parecer um tudo ou nada enganadora: se ninguém ensina ninguém, farão falta educadores e professores? O Dr. João dos Santos, autor da frase toda a vida se rodeou destes profissionais, por isso, não tenho dúvida que acreditava no seu papel fundamental. Discordava certamente do papel tradicional que se esperava deles: ensinar.

Defendia que “cada um aprende com o que lhe é fornecido pelo ambiente natural e humano”. De onde se deverá depreender que este deverá fornecer o alimento, as pistas, as ocasiões e necessidades para aprender e para nos tornarmos inteligentes. E a liberdade para o fazermos.

Gosto, aliás, muito do nome deste painel: “Uma educação para a liberdade, democracia e amor”. O uso do termo democracia é aqui redundante, ou melhor, conclusivo, pois que é gerada pela liberdade e pelo amor. O amor ou afecto é portanto o primeiro alimento e necessidade da criança. E os pais, primeiros educadores e humanizadores, são os alicerces deste chão onde a capacidade de entender e acreditar em si própria e nos outros a criança se permitirá crescer em confiança. Este afecto tem de ser pró-activo, não chega gostar de uma criança para a amar, é preciso acreditar nela: acreditar que vai crescer, que vai superar obstáculos, obter sucessos, encontrar o seu lugar no mundo. Mesmo perante as suas dificuldades. Não é a posição caridosa e desculpabilizadora, do “deixa lá” mas sobretudo a base firme de que não há problema que não tenha solução, desde que não se desista e haja quem ajude, se necessário. Aos adultos de proporcionarem este ambiente!

A perspectiva pedagógica defendida pelo Dr. João dos Santos associava o afecto ao respeito, e este à liberdade. Respeito pela criança enquanto ser único e irrepetível, isto é, com ritmo, curiosidade, interesses, capacidades específicas, e assim, também não é difícil aceitar que defendesse a individualização da aprendizagem, ou seja, do ensino. À medida da criança.

A escola não é um ambiente natural à criança que precisa de compreender que este é um espaço com regras diferentes, onde não pode fazer, nem dizer tudo, nem exprimir todas as suas emoções. Pelo menos, não da maneira como faria em casa, no seu espaço, com os seus adultos, com os seus objectos, com os seus irmãos. Esta diferenciação tem de estar razoavelmente interiorizada antes de se entrar para a escola.

A pedagogia terapêutica assenta em princípios que são muito simples e é essa simplicidade que torna a sua prática difícil. Nestas crianças que se recusam aprender, pensar ou usar o pensamento, como dizia a Dr.ª Teresa Ferreira, há muito sofrimento emocional, que sem ajuda se vai cristalizando numa morte psíquica (Teresa Ferreira), agida exteriormente de uma forma mais ou menos óbvia. Estas crianças que não aprendem, apresentam um quadro psíquico no qual pensar se tornou tóxico. Uma vez numa aula de observação directa o miúdo não parava quieto, corria pela sala, mexia nas nossas coisas… Numa das correrias aproximou-se do Dr. João dos Santos, até então, imóvel e silencioso, que lhe disse: “Se tu parares, vais pensar e vais ficar muito triste”. O miúdo não se mexeu mais, afundado na cadeira, afundado no seu próprio sofrimento, que disfarçava correndo, como se fugindo da sua própria sombra. Esta criança não podia pensar, como então aprender o que a escola lhe propunha.

Foi com o Dr. João dos Santos e com a equipa da Casa da Praia que aprendi que a “festa” podia ser uma metodologia de intervenção pedagógica. Na banalidade rotineira dos dias que se seguem uns aos outros, a festa, é um ritual que quebra ciclicamente o carreiro das formigas, que somos nós. A “festa” é um espectáculo completo, redondo, que apela a todos os sentidos. É ruidosa, colorida, saborosa, afasta sombras, todas as sombras. Lembremo-nos do Natal, que se aproxima, celebrado no pico do Inverno, na noite escura, afugentada pelas luzes, que pronunciam a Primavera ainda tão longe. Mesmo o excesso de consumo visava para os antigos e se calhar também para os contemporâneos a teimosia de que é da escuridão, do frio, do medo, que nasce a luz, o afecto, a coragem de acreditar que o mundo é giro e gira, e cada volta é uma oportunidade.

Em 1987, o CAI (Centro de Arte Infantil), dirigido pela Dra. Natália Pais, escrevia na introdução do catálogo da exposição intitulada “As Festas – Passeio pelo calendário”:

“Trata-se de motivar adultos e crianças a participarem duma maneira mais consciente e mais activa nas festividades consagradas pela tradição, como forma de contribuir para a definição da nossa identidade cultural. Trata-se, também, de chamar a atenção para a conveniência de manter vivo o hábito de organizar pequenas festas familiares, escolares, paroquiais, de freguesia, ocasiões de convívio tão importantes que são e destinadas a contrariar as tendências para o isolamento, para a passividade e para a aridez de vida que caracterizam as sociedades modernas.”

Aqui há uns anos largos um grupo de alunas, salvo erro, do curso de Educação Social, tinha como projecto de estágio, as questões de higiene pessoal de um grupo de miúdos num bairro social. Começaram por organizar uma festa e convidaram formalmente as crianças, convite escrito, em papel e em mão. Os miúdos apareceram todos de banho tomado e roupa lavada. Afinal, era uma festa, toda a gente sabe que para uma festa se tem de ir de forma apresentável.

Quem viveu a experiência de trabalhar nesta perspectiva teve a oportunidade de verdadeiramente perceber outra das grandes afirmações do Dr. João dos Santos a propósito da inteligência, é que esta consiste na capacidade de ligar. De ligar tudo, pessoas, factos, conhecimentos, novas pessoas, novos factos, novos conhecimentos. E também a capacidade de resolver problemas.

Como é que isto se cruza com a festa? Muito naturalmente, uma vez que uma festa bem feita, exige a colaboração de muitos, uma quantidade impressionante de saberes e competências, e a resolução de um sem número de pequenos e grandes obstáculos. Todos participam, todos têm uma parte e ainda assim a festa resulta sempre numa enorme surpresa e quando as coisas correm bem na memória de um deslumbre, que justifica todo o trabalho.

E as aprendizagens escolares? Escrevem-se os guiões, os convites, as peças de teatro, as receitas da comida. Viaja-se pelos mapas e pela história antes do passeio ou imaginando o passeio. Fazem-se muitos cálculos matemáticos para saber custos de bilhetes, de materiais, de gramas e quilos que se transformam em comida… Escreve-se novamente para ensaiar, para pedir ajuda e opinião. Fazem-se somas para saber se há espadas que cheguem, ou pratos, ou copos ou cadeiras. Aprende-se a ver as horas, os dias, o calendário. Aprende-se a falar, aprende-se a estar calado, a mexer-se, a ficar-se quieto. Treina-se a memória, dizem-se os poemas que foram escritos e escrevem-se as histórias contadas. Vive-se a festa. Tiram-se fotografias, colocam-se nas paredes, desenha-se, escreve-se, liga-se tudo, criam-se memórias… E de repente começa tudo outra vez, a propósito de um miúdo que nunca tinha visto uma piscina, ou um castelo, ou…

E faz-se tudo de novo, mas somos muito melhores, porque aprendemos imenso da última vez e lembramo-nos.

Tive imensa dificuldade em escrever esta comunicação, porque é tão simples, tão encantadoramente simples… E, no entanto, tão difícil sem a acção, sem o movimento, sem o envolvimento.

Por exemplo, quando o Dr. João dos Santos diz: “ Não reprimam as crianças ajudem-nas a reprimir-se”, o que se salienta é a importância da interiorização das regras que permite o controle dos impulsos agressivos. E agora, como é que isto se faz? Num dos meus primeiros dias de Casa da Praia, ainda na fase de observação, na sala da Fernanda, dois miúdos implicavam um com o outro, o típico: é meu, é teu, eu quero, não mexas. A situação ia em crescendo, as mãos já a prepararem-se para o estalo e empurrão. Diz a Fernanda muito calmamente: “Estes dois, parece-me, querem lutar, o que é que vocês acham?”. De repente afastam-se mesas e cadeiras, surgem luvas de boxe, há um árbitro,  trocam-se murros, apertam-se as mãos, tudo termina, arruma-se e volta-se ao que se estava a fazer. Talvez não tenha sido assim tão rápido, mas tenho a certeza do insólito, pelo menos para mim.

Outra… Aquele menino corria desalmadamente na direcção da Lurdes que o agarrava por debaixo dos braços e rodopiava com ele pelos ares, tipo avião fora de controle. Aquele menino da primeira vez que correu para a Lurdes encheu-a de pontapés. Ela nunca mais se deixou apanhar desprevenida, ele nunca mais lhe deu pontapés.

Quando o Dr. João dos Santos diz: “A criança é obra de si própria”, enfatiza a necessidade absoluta dos meios expressivos que permitem a humanização e o crescimento: o corpo, o gesto, a comunicação da liberdade interior ou fantasia, o silêncio. Na Casa da Praia, havia desenhos por toda a parte, as paredes cheias, uns grandes, uns pequenos, uns minúsculos, obras de arte, borrões, rabiscos, todos expostos, todos assinados, todos valorizados. No “Jornal da Praia”, elaborado pelas crianças com a ajuda dos adultos, toda a gente podia ser publicado, todos os textos eram notícias importantes. O Joaquim escreveu: “ eu sei jogar à malha”. O Rogério por sua vez, contou: “O balão estava a subir e rebentava lá no céu… era do menino. O menino estava em casa a espreitar… para ver o balão rebentar.” Não competia aos adultos escolher, muito menos censurar. “Tenho uma borrega que se chama boneca. A borrega tem um filho na barriga. Vai sair qualquer dia. A borrega é castanha e branca. Ela está a fazer cocó”. Esta era a história do Daniel. Não eram os adultos que decidiam da importância dos textos, ou seja, das histórias expressas. Como podiam avaliar da importância para uma criança, da competência de saber jogar à malha, as vantagens socializadoras que esse domínio permitiu, teria esta criança ensinado o jogo a outras? Teria ganho por que jogava melhor? Igualmente como avaliar da importância de perder o balão, ou as pessoas de quem se gosta, porque fugiu (fugiram) para o céu, para outra casa, enquanto ficámos a ver a distância intransponível, lá no céu. Teria o Daniel uma borrega à espera de uma ovelhinha ou uma mãe grávida, de um irmão que ele não sabia muito bem como tinha entrado, nem muito bem como ia sair… Os adultos da Casa da Praia emprestavam mãos (foi lá que ouvi pela primeira vez esta frase), emprestavam as suas capacidades e competências para que as crianças as usassem para se exprimir. Fui muitas vezes “escrevente” destas ideias que progressivamente ganhavam voz e corpo e finalmente podiam ser ilustradas, escritas, publicadas.

A qualidade da obra estava sempre assegurada: era a da criatividade infantil, a voz de cada criança. O que nos leva à questão do respeito e da liberdade.

Lição de respeito: a criança que não aprende não é necessariamente preguiçosa.

Lição de respeito: a criança que não aprende não vem necessariamente de uma família que desvaloriza a escola.

Lição de respeito: a criança tem vontade própria.

Esta última é que é verdadeiramente difícil de aceitar, porque significa, tão somente que o adulto não deve impor à criança as suas angústias. Aliás, a criança tem as suas próprias e precisa da solidariedade do adulto, daquele que foi pequenino e que conseguiu crescer, para as enfrentar. Quando tu eras pequenina?

Quando era pequenina tive medos, sonhos, dúvidas, saudades, brinquedos, desejos, segredos…

Como se educa, não é uma pergunta, mas sim o título de um pequeno texto, quase um apontamento, um pensamento registado…

Educa-se com o sentir e não com a inteligência.
Só se educa inteligentemente se se educa pelo coração e com AMOR.
De AMOR pelas crianças só são capazes aqueles que amam a criança que neles habita.
Nem todos puderam ser crianças, alguns foram apenas objectos utilitários de alguém.
Que o teu filho não seja um utensílio de compensação da tua frustração ou um adorno da tua vaidade. Não o tornes num autómato, não faças dele um objecto utilitário.

João dos Santos (1983), p. 300

Sílvia Madeira
Psicóloga Clínica, Professora Adjunta na Escola Superior de Educação de Santarém
Novembro 2013
 
 
 
*   Comunicação na Conferência “XXI Jornadas da Prática Pedagógica da Escola Superior de Educação de Santarém – O Segredo do Homem é a própria Infância: pensar em Educação com João dos Santos”, proferida pela Dra Sílvia  Madeira, 9 de Novembro de 2013

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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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