
Nos anos sessenta o Dr. João dos Santos propôs ao Prof. Barahona Fernandes, então director do serviço de Psiquiatria do H.S.M, a realização de um seminário semanal de observação e reflexão clínica a partir das entrevistas por si realizadas a pessoas que, na sua maioria, acorriam à consulta de Psiquiatria.
O Seminário João dos Santos que se constituiu como um grupo de trabalho, foi formado no início principalmente por médicos internos de Psiquiatria a quem João dos Santos entrevistava previamente, sendo exigido que tivessem algum tempo de treino em Psiquiatria geral (de início cerca de 2 anos), pois não queria que a nova perspectiva que o seminário proporcionava interferisse na “formação clássica” que considerava importante como base do treino.
João dos Santos começava por receber o “doente” – por nós proposto e que aceitara previamente participar na reunião – num gabinete anexo à sala do grupo, dando-se a conhecer através do seu nome e do que fazia profissionalmente, pormenor importante porque significativo do respeito que sentia e transmitia pelos que se dispunham a ir falar com ele na nossa presença. Na entrevista começava por informar a Pessoa que só falaria do que quisesse, confirmando assim o seu direito à intimidade e privacidade. Depois, em silêncio, oferecia-se numa disponibilidade para a escuta também transmitida pela sua postura corporal expressiva do seu espaço psíquico acolhedor, contentor e atento.
Quando a entrevista terminava acompanhava a Pessoa até a porta do gabinete onde a encontrara previamente, despedindo-se. Se enfatizo com algum pormenor como se passavam o início e o fim do encontro, na grande maioria das vezes único, entre João dos Santos, o grupo e o entrevistado é porque esta atitude relacional, só por si psicoterapêutica, contrastava com a forma burocrático-administrativa como os utentes eram e provavelmente são recebidos no contexto de uma consulta hospitalar. A Pessoa entrevistada poderia ser desde uma criança sentada ao colo de sua mãe até um respeitável e respeitado octogenário.
A maneira como se estabelecia e processava a Relação, a sensibilidade na escuta e no trato, a captação da comunicação não-verbal, o equilíbrio entre silêncios e trocas verbais, o respeito pelo sofrimento psíquico, a utilização da intuição ao serviço da compreensão numa atmosfera intersubjectiva etc. … constituía para nós jovens uma forma completamente inovadora de atender e entender uma Pessoa.
O grupo vivenciava sentimentos de curiosidade, encantamento, inquietação e incompetência para a compreensão psicológica, incapacidade relacional etc. … mas também desejo de aprender através daquela experiência partilhada e progressivamente reflectida.
A seguir à entrevista, João dos Santos perguntava a cada um de nós o que sentira, questão que nos embaraçava e de que no início nos defendíamos falando de sintomas, de diagnósticos, etc. Tínhamos sido educados e treinados no “modelo médico” que não colocava a Relação como questão central na compreensão da psicopatologia causadora de dor psíquica. O que João dos Santos procurava era sensibilizar-nos para a importância da Relação no sentido de aproveitar o seu potencial psicoterapêutico, mesmo que todos nós na altura seguíssemos os nossos doentes com apoio psicofarmacológico, por indicação específica ou por contingências contextuais e, muitas das vezes, porque não sabíamos fazer de outra maneira.
Através da exploração da nossa contra-atitude e da análise do que observáramos e sentíramos na entrevista, elaborávamos hipóteses de compreensão da problemática do entrevistado, para o que éramos afectiva e efectivamente encorajados por João dos Santos na utilização da nossa capacidade de imaginar o mais livremente possível. Não nos era fácil.
Recordo o profundo respeito que João dos Santos transmitia pelas nossas dificuldades e como ouvia atentamente tudo o que dizíamos, aproveitando criticamente o que fazia sentido. Nunca nos sentimos humilhados por essas dificuldades e inexperiência. O grupo estabelecia seguidamente hipóteses de diagnóstico, quer de estrutura mental quer nosológico, debruçando-se então sobre a orientação terapêutica.
É muito curioso lembrar que nessa altura, quando João dos Santos nos perguntava se estaríamos disponíveis para seguir as Pessoas numa perspectiva mais relacional de apoio e compreensão psicológica, a nossa incapacidade manifestava-se num “não”!
Refiro-me aos primeiros tempos do trabalho do grupo, pois entretanto muitos dos que continuaram interessados e motivados por uma Psiquiatria Dinâmica foram adquirindo experiência e formação pessoal analítica (psicanalítica e ou grupanalítica).
O contacto autenticamente íntimo que João dos Santos estabelecia com a Criança presente no adulto e adolescente, no seu sofrimento e nas suas potencialidades, muitas das vezes por descobrir e desenvolver, como que à espera de um Encontro, constituiu uma experiência humana muito enriquecedora e transformadora e como tal em muitos de nós determinante na construção da nossa identidade como Pessoas e profissionais de saúde mental, intimamente interligadas.
Pessoalmente, devo a este “Encontro” com João dos Santos a prossecução do meu “sonho” de ser psiquiatra, não sabendo ainda bem como, que sentira desde a entrada na Faculdade de Medicina de Lisboa ou mesmo antes, a partir da consciência da minha vida psíquica, e curiosidade pela sua compreensão. A experiência com a “Psiquiatria Clássica”, como então se dizia, se bem que indispensável e importante, teve aspectos decepcionantes por em muitas circunstâncias não me identificar com o seu modelo de pensar e lidar com o sofrimento mental. No entanto não esqueço o apreço intelectual e o reconhecimento pelos que me formaram nessa fase da minha vida.
João dos Santos frequentava as reuniões clínicas do serviço de psiquiatria do H.S.M. e também aí constituiu uma referência identitária importante para alguns de nós, não só pelo pensamento clínico inovador face ao pensamento académico, como pelo carisma da sua Presença. Naquela época e naquele contexto, a integridade de João dos Santos, mantendo-se sempre coerente na sua identidade Analítica, constituía um exemplo de coragem face à “mentalidade de grupo” que a “psiquiatria clássica” constituía na sua preponderância e no poder para afectar a carreira profissional e institucional de quem a contestava.
Frequentei o Seminário João dos Santos até 1973 prosseguindo a minha relação de trabalho com ele em vários contextos. O Seminário continuou até 1981 (?) sendo o grupo constituído por um núcleo de membros “fundadores” a que se juntaram progressivamente jovens internos de psiquiatria, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, etc.
A importância do Seminário estendeu-se (e desejo acreditar que continua a estender-se) para lá dos seus objectivos iniciais no contexto em que se inaugurou. Assim organizei uma equipa multiprofissional (médicos, enfermeiros, assistentes sociais) em colaboração com colegas que sempre frequentaram o seminário. Não podendo nomear todos mencionarei César Diniz, Sara Ferro, Isaura Neto dado que permaneceram na equipa desde o seu início. Esta equipa desenvolveu-se a partir do modelo do Seminário João dos Santos, na perspectiva de sempre ter privilegiado a observação e discussão clínica em grupo e procurando constituir-se como um espaço de liberdade de imaginação do psiquismo do doente num clima relacional atento aos afectos partilhados. Esta equipa através da sua experiência escolheu como desígnios principais a formação de técnicos (médicos e não médicos), muitos dos quais frequentaram o Seminário João dos Santos, e a eleição do Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria do H.S.M. para seu objecto e objectivo de trabalho.
O Hospital de Dia progressivamente transformou-se num meio complexo e especializado de cuidados intensivos psicoterapêuticos (de orientação analítica em meio institucional) destinados a “doentes difíceis”. Se o cito é porque como atrás referi, o Seminário João dos Santos permitiu-nos uma inspiração, aprendizagem e elaboração que contribuíram largamente para a nossa realização como técnicos de saúde que procuraram integrar o pensar e o fazer psicodinâmicos na prática terapêutica institucional e na formação dos seus técnicos.
Esta equipa contribuiu para a formação de várias gerações de médicos psiquiatras e não só, que “transportaram” este modelo, com as necessárias e desejáveis modificações, para outras instituições de que vieram a tornar-se profissionais responsáveis.
É com um profundo sentimento de afectuosa homenagem e gratidão que partilho estas memórias que julgo reveladoras da Pessoa que João dos Santos foi na sua acção, pensamento e obra. João dos Santos continua presente em todos os que tiveram o privilégio de com ele trabalhar e conviver, perpetuando-se às novas gerações de profissionais.
Do que João dos Santos guardo acima de tudo como mais precioso é a Pessoa que ele foi e que dele fiz e a importância da sua Presença viva na minha Pessoa.
João França de Sousa
22 de Abril de 2013
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