
João dos Santos tem de ser invocado através do que foi e nos ensinou a ser.
Vinte e seis anos passados sobre a sua morte, a sua lembrança continua bem viva em todos os que, como eu, tiveram o privilégio de o conhecer e de aprender com ele – partilhando dúvidas e certezas.
Vou tentar falar dele e da sua relação com o Colégio Eduardo Claparède de que foi um dos fundadores. Nesses anos 50, jovem adolescente olhava com certo receio aquele senhor tão admirado por minha mãe e outros colaboradores e que, aqui para nós, me intimidava com o seu olhar tão vivo e profundo.
Nessa década de 50, fui indirectamente testemunha da grande actividade que se desenvolveu à volta dele e de um grupo de pessoas entusiastas e determinadas como minha mãe Rosa Bemfeito, Margarida Mendo, Maria Amália Borges, Maria Luísa Torres Pires, Arminda Grilo. Depressa chegaram à conclusão que havia muito a fazer e ainda nessa década lançaram as bases de outras instituições. Cito apenas a primeira classe de amblíopes que deu origem ao centro Helen Keller e a Liga Portuguesa de Deficientes Motores actualmente Fundação Liga.
O Colégio era então, como é ainda hoje, um espaço familiar, acolhedor e contentor. Nele se formou uma equipa e se ensaiaram metodologias de didática especial. A avaliação constante e regular, fazia-se sobretudo através do seminário psicopedagógico que se realizava semanalmente, (eram as reuniões de terça-feira).
Essas reuniões que sempre se continuaram a realizar, tinham uma porta aberta para o exterior e por elas passaram muitos nomes conhecidos nas áreas da saúde mental e da pedagogia. Não se limitavam ao estudo de um caso (ver a melhor linha terapêutica, pedagógica a ter com esta ou aquela criança), mas eram também uma formação constante para toda a equipa e fiéis frequentadores.
João dos Santos, com a sua enorme capacidade de comunicação e sentido de humor fazia com que se aprendesse informalmente.
A sua presença era sempre interessada e aliava uma grande tolerância a uma grande exigência.
Muitas vezes dizia “Só faço aquilo que gosto!”. Isso era muito importante para que quem o ouvisse, percebesse que “Nisto de lidar com crianças, é preciso gostar!”. É um ofício que só se faz com PRAZER. “Tem de se educar com autenticidade e afectividade”.
Ouvia atentamente o que os professores e os técnicos diziam, as dúvidas que colocavam, aconselhava-os e ajudava-os a reflectir.
Ensinou-nos muitas coisas simples e complexas por serem simples. Ensinou-nos que “Um educador deve observar mas também deixar-se observar”, “Educar é oferecer-se como modelo”.
Sempre que algum incauto puxava duns papéis onde tomara notas sobre a criança de que se estava a falar ele protestava logo e dizia: “Meta lá os papéis no bolso. Diga o que sente!”
Também um dos traços mais marcante da sua influência no Colégio foi a importância dada à criatividade da criança e do jovem – à capacidade de se exprimirem através do gesto, do corpo, da música e da expressão plástica.
Lembro, a propósito, ainda no final dos anos 50, uma extraordinária exposição de pintura e gravura dos alunos do Colégio na S.N.B.A.. Cecília Menano orientava nessa altura o atelier de artes plásticas do Colégio, com a colaboração de Maria de Conceição Gouveia que foi uma das suas continuadoras.
João dos Santos ensinou-nos:
“Se as escolas fossem oficinas onde a criatividade tivesse um papel primordial mesmo na aprendizagem da leitura e contas, as crianças trariam consigo e dentro de si mais objectos de amor para se protegerem da vida.”
Durante as reuniões, dizia frequentemente: “Não acreditem naquilo que eu digo. Estava só a inventar.” Quem o ouvia interrogava-se. Estaria a falar a sério? Seria verdade aquilo que ele estava a dizer? Era, mas era também uma maneira de nos levar a reflectir e a duvidar – a dúvida é tão importante como a certeza.
Homem de linguagem simples e acessível, era com uma não disfarçada ironia que, sempre que algum de nós usava um termo mais técnico, dizia: “Não sei o que quer dizer, traduza lá esse palavrão!”
Finalmente quero recordar o homem e o amigo que amava profundamente a vida e que para quem todos os pretextos eram bons para reunir colaboradores e amigos em almoços e jantares, gozando da sua companhia e das conversas que se arrastavam pela noite dentro. O amigo que nos convidava a ir até à sua casa de Sesimbra e à sua pequena quinta de S. Pedro de Sintra, onde fazia questão que admirássemos as framboesas que lá cultivava e que depois nos oferecia.
João dos Santos interessava-se também por todas as manifestações culturais que iam acontecendo – da pintura à literatura, do teatro à música e ao cinema.
Relato a propósito um pequeno episódio: um dia João dos Santos confidenciou ao meu marido, crítico de cinema em vários jornais, que gostaria de mostrar aos seus colaboradores uns filmes que muito o interessaram. Foi assim que o Zé organizou nos cinemas Quarteto, com a colaboração de Pedro Bandeira Freire, a exibição privada de 2 filmes de François Truffaut “O Menino Selvagem” e “Os 400 Golpes” e de um filme de Werner Herzog “Kaspar Hauser”.
No final das sessões houve debates muito vivos e enriquecedores com a participação de toda a assistência. Um sucesso!
Com João dos Santos crescemos e aprendemos que:
“O importante é trazer no coração a vida e os ensinamentos que nos sopraram, aqueles que tinham a sabedoria”.
“A arte de viver consiste em saborear o mel da vida mesmo quando a adversidade nos atinge”.
Um dia eu gostaria de poder dizer tão convictamente como João dos Santos:
“A minha vida foi o prazer de existir”.
Maria Isabel Vaz Pereira
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