O que aprendi com João dos Santos que não vem nos livros …

Maria Jose Vidigal 2Maria José Vidigal*
Setembro de 2012

A noção de psiquiatria infantil foi-se instalando progressivamente, se bem que a sua história não seja de todo comparável à da psiquiatria geral, que vem desde tempos remotos.

Mais recente ainda é a ideia de saúde mental infantil, o que quer dizer, que pode haver uma educação protectora do desenvolvimento psico-afectivo da criança. Além disso, se a saúde mental se constrói na infância, esta terá que se ocupar dos pais para que criem melhor os filhos e das crianças para que possam vir a integrar-se na comunidade e para que esta não as excluam.

Os problemas de Saúde Mental são de tal amplidão e complexidade que exigem das instâncias superiores de saúde um reconhecimento profundo dos problemas para que seja exequível uma planificação de serviços.

A construção da saúde mental inicia-se na infância precoce, diríamos mesmo antes do nascimento, e a investigação nesta área teve início com João dos Santos há cerca de 50 anos, continuado depois por Maria José Gonçalves e a sua equipa, com a formação da Unidade da Primeira Infância, em 1983, e depois outras investigações se seguiram em vários pontos do país.

As primeiras ligações da criança (com familiares, de sangue, afectivas, sociais) constituem o núcleo das interrogações clínicas e da investigação.

A questão é esta: será possível favorecer o desenvolvimento e a conservação de um elo afectivo estável e seguro entre a criança e os seus pais ou isto é o resultado da natureza de um processo espontâneo em que não há qualquer intervenção nem é necessária? Esta ligação pode ser tratada, reparada?

Actualmente existe uma preocupação crescente, que leva à instalação de programas (França, Brasil e outros países) de acções preventivas e terapêuticas, no domínio da perinatalidade e da primeira infância; das diferentes parentalidades, das noções de risco e de resiliência. De igual modo se tem estudado as competências sensoriais e interactivas precoces da criança.

Matilde Rosa Araújo dizia que João dos Santos era um evangelho junto da criança.

Se toda a educação tem que ser poética, como dizia Jacinto Prado Coelho, de igual modo todo o estar, todo o ser, todo o fazer.

E foi com este Homem que tive o privilégio de trabalhar. E tive muita sorte!…

E até tenho sorte de ainda ter tido tempo de poder escrever estas palavras, para dar a conhecer o psiquiatra, o médico, que introduziu a modernidade na maneira de ver e de estar com a criança, e que ainda mantém em Portugal uma actualidade impressionante. Espero que nada disto se perca porque faz parte do nosso património cultural e humano.

Uma primeira grande lição, à época verdadeiramente revolucionária: as crianças e famílias que atendemos nos Serviços Públicos merecem-nos tanto respeito como as que atendemos nos consultórios privados. Isto significava que a maneira de recebermos as pessoas, a pragmática social adequada à situação não diferia quer se estivesse num local ou noutro.

E assim, a Ricardina, prostituta que actuava no Cais do Sodré, era recebida com a mesma deferência que a senhora doutora que tinha nível económico e social para ir ao privado.

O efeito e o impacto que esta atitude tinha sobre as mães, só é possível apreciar e valorizar quando se viveu uma tal situação.

Pois bem, a Ricardina veio aos 18 anos de uma aldeia perdida na serra, para Lisboa e que após dificuldades de vária ordem, resvalou para a prostituição. Veio à consulta, pedindo o internamento do filho de 4 anos, que ficava escondido debaixo do catre, na barraca onde viviam e onde ela recebia os homens. O seu pedido foi rapidamente satisfeito. Era uma mãe extremamente reivindicativa, agressiva para a enfermeira do Centro de Saúde, responsável do seu caso e que lhe deu possibilidades de arranjar casa e trabalho. Ricardina tudo recusava. Foi abandonada pela própria mãe, entregue aos cuidados de uma creche, depois deu entrada num internato, onde não estabeleceu quaisquer laços afectivos, e donde saiu aos 18 anos, directamente para a prostituição. E foi de um homem que lhe deu algum afecto, que ela engravidou. Para proteger o filho, veio à consulta pedir o seu internamento, pedido esse que foi satisfeito. Com regularidade, Ricardina vinha à consulta, recusando sempre fazer uma marcação prévia. Nunca aceitava a mão para os cumprimentos habituais: olhava, sorria, dizia que estava tudo bem e retirava-se como uma sombra … Os cabelos eram cortados à “tijela” e as roupas acastanhadas sobravam naquele corpo magro e sem viço. Tinha um olhar enigmático, de criança acossada e um breve sorriso lhe iluminava o rosto. Voltava a sair sem nada dizer, a não ser as palavras de circunstância … São infindáveis os segredos que existem no olhar de uma mulher tão abandonada e desamada …

Passaram-se vários anos … Ricardina reaparece num outro Serviço (Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa), longe do primeiro, a seguir à revolução de 25 de Abril de 1974, à procura de uma doutora que a tinha tratado como uma “senhora”. Mantinha o mesmo aspecto de criança abandonada mas com um olhar mais brilhante: “queria dizer-lhe que se deu também uma revolução na minha vida – aceitei o trabalho e a casa que a enfermeira me queria dar! … “

Anos depois, tive conhecimento que o filho, operário especializado, casou e a mãe morreu, ainda relativamente jovem, vítima de uma doença que tinha adquirido durante a sua vida de vagabundagem…

Muito se pode fazer quando se acredita no potencial que cada ser humano encerra dentro de si …

Uma obra que João dos Santos nos falava que queria escrever e nunca chegou a fazê-lo, era sobre a motivação em saúde mental. Como levar as pessoas a pedirem ajuda a um técnico desta área?

Para o efeito, realizava reuniões no Centro de Protecção à Maternidade e à Infância D. Sofia Abecassis. Eram habitualmente as Enfermeiras, ou algumas estagiárias da Escola Técnica, que apresentavam os casos.

Havia uma senhora, mãe solteira, muito reivindicativa, agressiva para as enfermeiras e que recusava qualquer ajuda ou opinião. Apresentaram-lhe o caso, um tanto ou quanto desesperadas, pela incapacidade que ela tinha sempre demonstrado em alterar os seus comportamentos muito inadequados para com o filho de 5 anos. Houve então uma reunião com a referida mãe e todo o staff do Centro Sofia Abecassis. À roda de uma grande mesa, sem ninguém com lugar de destaque, conseguiu que todos falassem, nomeadamente a referida mãe, sobre as suas dificuldades com as próprias mães, nomeadamente ao nível da alimentação.

Essa reunião foi na 2a semana de Julho, antes do dia 14. João dos Santos, que tinha feito a sua formação no Centro Alfred Binet, em Paris, terminava as reuniões a 14 de Julho, data da tomada da Bastilha!

Ora bem, a mãe saiu furiosa da reunião e procurou-me para me dizer que “aquele dr.” tinha estado todo o tempo a gozar com ela e que nunca mais o queria ver!”

Após as férias, a mesma mãe vem procurar-me para me dizer que informasse “aquele dr.” que ela já tinha resolvido o problema do filho mas que “tinha sido ela e não ele!”

Claro que podemos admitir que aquela mãe passou as férias a pensar no dr. João dos Santos e, como prova que ele não a tinha ajudado em nada, era ela própria a resolver o problema!

Só aparentemente são aspectos banais, visto corresponderem a um profundo conhecimento do outro e a uma sabedoria que não se pode aprender nos livros.

Muito do que aprendi com João dos Santos não vem nos livros: o modo de estar, o modo de ser, o modo de receber …

Existe sempre um lado bom das coisas e, como diz Einstein – por mais velho que se seja, pode ser-se mais jovem do que nunca.

*Pedopsiquiatra e psicanalista

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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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