
Há pessoas cuja vida continua a existir para além da sua ausência física. E nem sempre são da nossa família ou nossos amigos. João dos Santos é uma delas.
Marcou várias gerações de técnicos da saúde mental e de várias outras áreas, a educação, a justiça, a pediatria. E continua a marcar as gerações actuais pela transmissão dos seus escritos e dos testemunhos dos que com Ele conviveram.
Este ano faz 100 anos que nasceu.
Esta crónica é a minha homenagem a um colega psiquiatra, com quem nunca trabalhei, mas de quem aprendi muito.
João dos Santos foi um dos primeiros psicanalistas em Portugal, fez a sua formação em Paris, nos tempos difíceis do pós-guerra.
Mas foi sobretudo o fundador da moderna psiquiatria infantil entre nós.
Não era um homem do Estado Novo, longe disso, sempre foi de esquerda e penalizado pelas suas opções políticas, mas foi-lhe entregue a responsabilidade da criação do primeiro Centro de Saúde Mental Infantil.
Conheci-o num seminário notável de observação de doentes que fazia no Hospital de Santa Maria para a Equipa do João França de Sousa.
Entrevistava um doente e depois cada um de nós podia dizer o que quisesse com total liberdade, não havia a noção de certo e errado, tudo o que disséssemos podia ser aproveitado para pensar sobre a pessoa que estava a ser observada.
Aprendi aí a dar uma grande importância ao que cada doente tinha despertado em nós, de positivo e de negativo. Para ajudar alguém não basta saber diagnósticos e terapêuticas, é preciso empatizar com a pessoa e nem sempre isto é fácil.
Quando não conseguirem gostar de alguém falem sobre a sua infância, é quase impossível não gostar de uma criança…, foi uma das ideias mais fortes com que fiquei e hoje transmito aos mais novos.
Um dia, depois de falar com um doente, pediu-lhe para ficar e assistir à discussão sobre o “seu caso”, ficámos aflitos, mas passados os primeiros minutos fizemo-lo como se o paciente tivesse saído.
João dos Santos tinha a noção da importância do prazer no trabalho, era muitas vezes divertido, provocador e nunca chato, como alguns técnicos são…
A sua identidade era claramente de um psicanalista, mas não era sectário e apoiava outras formas de psicoterapia.
Quando, com outros colegas, começámos a terapia familiar em Portugal, João dos Santos apoiou-nos claramente, ao contrário de outros mais radicais…
Foi um dos primeiros psicanalistas a compreender que tinha de sair do trabalho de gabinete e divulgar as suas ideias ao grande público, escreveu para jornais, fez programas de rádio e aparecia na televisão.
Tive o privilégio de fazer um filme sobre a sua vida para a RTP.
Disse-me então uma coisa que mostra a sua forma de ser – não vou interferir no conteúdo do filme, a decisão é inteiramente sua.
Mesmo assim, na parte do filme em que surge com a sua família e se emociona, perguntei-lhe se queria que as imagens não fossem editadas, respondeu-me nem pensar…a vida é rir e chorar.
Já me aconteceu ter doentes que em crianças foram à consulta de João dos Santos e as memórias são sempre divertidas, gostei imenso, contava-me histórias muito giras, brincava muito comigo, disse aos meus pais para não se preocuparem que eu era perfeitamente normal.
João não procurava nas pessoas as partes doentes, ajudava-as a encontrar as partes saudáveis. Trabalhava com o sofrimento humano, mas ouvi-o várias vezes dizer – todos temos imensos recursos dentro de nós que só conhecemos quando estamos aflitos.
E tinha o sorriso de uma criança.
© 2013 joaodossantos.net. Todos os Direitos Reservados / All Rights Reserved.