Homenagem a João dos Santos

FOTO de Dr Jaime Milheiro MEDIUMJaime Milheiro*
Ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise  
15 de Maio de 2013

Tenho muito gosto em colaborar nesta Homenagem. É uma honra para mim, além de um dever. João dos Santos foi a Pessoa com quem mais aprendi na carreira profissional, sem programações que o previssem e sem deliberações que o encaminhassem. Tive com ele o achamento de uma figura de identificação. Na carreira da vida ele foi também para mim uma figura de extraordinário relevo. Por isso, quando me perguntam: “Onde estavas no 25 de Abril”, respondo sempre: “No João dos Santos”. Trata-se duma realidade efectiva: eu estava de facto nessa quinta-feira 25 de Abril de 1974, às 8,30 da manhã no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa, na Rua João Penha 14B, onde tinha encontro marcado com João dos Santos como em todas as quintas-feiras dos quatro anos anteriores e nas do ano seguinte, chegadinho do Porto de comboio, na carruagem da Wagon-Lits. Mas trata-se sobretudo de uma verdade íntima e simbolizante que para mim verdadeiramente funciona como verdade interior tornada realidade.

Vinte e dois anos mais novo, durante largos anos tive com ele a proximidade possível num formando em Psicanálise. Mas uma respeitabilidade empática, partilhada também por ele segundo creio, em mim foi gravitando dizeres e alinhamentos, apesar de todas as distâncias, geográficas incluídas. Encontros, colóquios, supervisões, cimentaram cumplicidades, tendo ele estimulado todos os degraus da minha formação na Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP). A partir de 1983, quando passei a integrar a Comissão de Ensino dessa mesma Sociedade, nessa nova situação de “paridade” formal outras partículas da sua riqueza interior tive ocasião de percorrer e de intuir.

Para além dos desempenhos profissionais e das reconstruções plenas de naturalidade que do seu contacto brotavam, sempre me deixou a impressão de alguém particularmente dotado e dum técnico particularmente preocupado com o sofrimento dos outros e com a maneira de prevenir e recuperar. Capaz como ninguém de entender a complexidade das situações infantis e de nelas intervir com a simplicidade dum sábio que jamais recorre às teorizações, brilhos ou academismos comuns entre vizinhos, através dele entendi a enorme valia da chamada presença do psicanalista, quer na prática clínica quer na textura sociocultural em que se envolve.

João dos Santos falava com graça e como quem humanamente sabia. E na prática interpretava como quem humanamente dizia: sem esforço e, pelo menos na aparência, sempre num posicionamento de igualdade com o paciente e com as suas circunstâncias. A inesquecível disponibilidade com que a isso se entregava foi uma das proposições fundamentais que dele recolhi, seguida desta outra: a absoluta necessidade de tentar ausentar todos os conhecimentos prévios (pessoais, científicos, sociais ou outros, sejam de que tipo for), quando ouvimos alguém e temos a intenção de ajudar ou compreender.

Nessas duas “pequenas” coisas ele foi o meu grande mestre. Coisas simples como se percebe, tão simples como dois e dois igual a quatro, mas coisas que habitualmente levam anos a compreender e muitos mais a operacionalizar. Trata-se de partículas tão simples, tão fáceis de compreender, tão fáceis de obter, que qualquer criança sem saber ler nem escrever, antes de qualquer aprendizagem organizada ou de qualquer possibilidade de nisso sequer pensar, se encontra completamente apta para as cumprir, mesmo não as sabendo discernir.

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Noutro plano, talvez por cumplicidade ideológica mais pressentida do que dialogada, também muito recolhi de João dos Santos. Eu pertencia à zona cultural dos anos sessenta, às suas mudanças idealizadas, aos seus projectos jamais concluídos. Tinha feito a guerra de Angola, tinha vivido em Paris, não perdia um Godard, lia o “Le Monde”, ouvia Jacques Brel, Yves Montand, Bob Dylan, Joan Baez, abominava Salazares e companhia. Nele reconhecia os mesmos desígnios e as mesmas elaborações, aprofundadas na experiência, tempo e mundividência, pelo que frequentemente, em zonas não necessitadas de palavras, lhe percebia a intenção e me sentia em casa. Na sua supervisão da Psicanálise, também inúmeras vezes tive ocasião de aprender a separar texturas ou até descobrir incompatibilidades entre factores psicológicos e factores sociais que nos analisandos se misturam. Ou seja, tive ocasião de aprender a distinguir as dificuldades vindas de dentro das dificuldades vindas de fora, numa leitura sem recuo. Novamente coisas simples, como se vê. Coisas que todos sabemos e que todos recomendamos, tão simples e tão pequeninas que insensivelmente se confundem e na prática se complicam nos ruídos do dia-a-dia.

João dos Santos nunca soube quanto me ensinou. Nunca lho disse. Sempre pensei que há intimidades que sem palavras se dizem e que ele não precisava que lho dissesse. Também nunca lhe disse quanto por seu intermédio, numa atitude tornada hábito, passei a tentar encimar a presença do psicanalista com outro elemento de difícil acesso que nele estruturalmente reconhecia: o sentido de humor.

Ter humor, em João dos Santos, não significava soltar sentidos disruptivos ou zombarias canónicas sobre pessoas, colegas, produtos ou situações. Significava saber jogar com as palavras do analisando e disso retirar benefício no processo interpretativo. Significava também, na vida real, ter a arte de deixar cair pequenas histórias onde uma especial capacidade de perfumar se associava a uma especial capacidade de troçar, em doseamento adequado e sem perda de qualidade. Significava no fundo, interpreto eu agora, ter a capacidade de contar como quem lentamente soletra a mediocridade dos outros, num estado psicológico que supõe uma muitíssimo alargada capacidade de tolerância e uma muitíssimo saudável capacidade de conjugar mecanismos de contensão com módulos de contra-poder.

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Personalidade notável, ímpar como cientista e como obreiro na área da criança em Portugal, João dos Santos era também uma pessoa sensível. No seu jeito desprendido, sempre muito mais preocupado com a organização interna das pessoas do que com as suas organizações administrativas, nem sempre conseguia sofisticar os conflitos.

Recordo a mais longa e tumultuosa reunião da Comissão de Ensino da SPP, das acontecidas entre 1983 e 2004, num Hotel do Buçaco no Outono de 1983, donde, sem culpa nenhuma em minha opinião, saiu seriamente combalido. Tinha 70 anos na altura, era Presidente da SPP. Não aceitou, depois disso, a sua recondução num segundo mandato, como era habitual fazer. Dos sete intervenientes nessa disputa, apenas dois permanecem vivos. Talvez um dia conte a história em pormenor.

Entretanto, vou procurar no fundo dos meus papéis, duas cartas que dele recebi nos anos que se seguiram.

Porto, 15/5/2013

Jaime Milheiro

(Ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise)

 *Dr. Jaime Milheiro, psiquiatra e psicanalista
 
  
 
 
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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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