
Psicóloga clínica aposentada
31 de Dezembro de 2013
Ocorreram-me de imediato estas afirmações. Será que poderiam ser, entre outras, uma forma de legado de João Santos às futuras gerações?
A Saúde Mental começa na infância. Sem Saúde Mental não há Saúde. Compete à Comunidade que cuida de Crianças Promover a Saúde, Prevenir a doença e intervir o mais precocemente possível – na díade mãe – bebé. Nas minhas recordações são estes alguns dos temas de reflexão e de acção, doadas desde sempre por João dos Santos a todos, muitos, que o conheceram. Por isso, queria agradecer-lhe comovidamente, estas minhas memórias fundadoras do que fui, do que sou e do que espero ainda ser. Conheci João dos Santos ainda criança muito pequena por via da amizade e consideração que meu pai, professor de Psiquiatria, manifestou ao então jovem recém-licenciado em medicina que se formou e trabalhou na Clínica Psiquiátrica Universitária do Hospital Júlio de Matos (anos 42 a 46). Paralelamente foi encarregue pelo Director do Hospital, António Flores, da organização dos dois Pavilhões Infantis. A minha família habitava desde 1942, ano seguinte ao meu nascimento e da minha irmã gémea Isolda, num pavilhão residencial destinado, por inerências de funções, ao director da Clínica Universitária. Foi por isso que cedo me fui apercebendo de deambulações de médicos, enfermeiros e doentes, que passeavam no parque do Hospital, que faziam ginástica nas sombras das ruas daquele mundo em miniatura ou que jardinavam e varriam as folhas secas dos castanheiros e tílias nas frondosas áleas circundantes. Pelo portão particular de acesso à casa familiar entravam muitas visitas lá de casa; havia um senhor que por lá entrava diariamente; atenta à frequência e à amabilidade de quem tinha esse hábito, informei-me e explicaram-me que era um doutor que só podia entrar pela residência e não pelo portão principal. Muito mais tarde vim a saber e compreender as razões deste insólito hábito, relacionado com a proibição dos poderes políticos infligida a João dos Santos de frequentar qualquer Hospital Público. Meu pai não aceitou essa ordem, assegurando a sua presença na Clínica, por acesso do portão da sua casa. Foi assim que se estabeleceu a forte amizade com meu pai, posteriormente alargada a outros elementos da família – a mim, à minha gémea Isolda, e já na adolescência, ao meu irmão António José. Sei como João dos Santos ficou grato pelo gesto de justa solidariedade de meu pai contra uma arbitrariedade policial – facto que cimentou uma amizade e apreço entre os dois – e que surgiram também em mim, anos mais tarde, e em diferentes etapas do meu percurso pessoal e profissional. Por exemplo, recordo ter João dos Santos recomendado aos meus pais uma Professora particular para a minha irmã Isolda que necessitou, por razões de doença, de continuar os estudos em casa. A Professora proposta foi Isabel Pereira, aceite por todos da família com entusiasmo. Refiro-me à Professora e Educadora especializada que reencontrei já nos anos 60 e com quem colaborei no Centro Infantil Helen Keller. Foi um extraordinário relacionamento que perdura até ao presente!
Foi ainda a Isabel, por incentivo de João dos Santos, que me deu a conhecer Maria Amália Borges – outro encontro relevante que me levou a descobrir o pujante pensamento duma pedagoga que se tornou outra grande amiga. M. Amália Borges estava impedida de exerce funções de professora, mas aplicava as técnicas pedagógicas Freinet (ligadas ao Movimento da Escola Moderna), numa escolinha “experimental” e semiclandestina, instalada no sótão da sua residência no bairro das Colónias. Foi aí que adquiri o gosto e vontade de me voluntariar. Com efeito aí fui educadora de infância “improvisada” a troco de me ser proporcionada a vivência de uma escolaridade inclusiva por ter colaborado na experiência, pioneira na época, de uma classe infantil integrando uma criança amblíope com crianças visuais. Manteve-se o entusiasmo e a experiência continuou no Centro H. Keller, no jardim Constantino, em 1963, sobre a orientação de sua Directora Ana Maria Benard da Costa e tendo como colega e Professora Especializada outra grande amiga: a Manuela Cruz. Amparada por estes laços afectivos fui fortemente “instada” a apresentar o relato dessa integração de crianças visuais com uma invisual e concomitantemente autista, numa sessão da Semana de Estudos sobre os problemas da cegueira e do ensino de cegos (organizada em colaboração com o oftalmologista Henrique Moutinho em 1963).
O meu persistente interesse pela pedagogia foi-se fortalecendo até aos tempos bem mais recentes, através do novo Conceito então proposto por João dos Santos – o da Pedagogia Terapêutica – praticada pela “Casa da Praia”, Centro de Estudos Dr. João dos Santos.
Aconteceu também que, ao longo de muitos anos João dos Santos “animava” sessões formativas em Centros de Saúde Materno Infantis (por exemplo no Sofia Abecassis) em Centros Psicopedagógicos (na Voz do Operário, no colégio Moderno e no Colégio Claperède) inspiradas pelas novas recomendações e práticas decorrentes dos movimentos internacionais de Higiene Mental e de Saúde Publica, surgidos nomeadamente nos E.U. Estas notáveis actividades que fui seguindo esporadicamente, impulsionaram-me na dedicação que sempre fui dando aos aspectos da prevenção das dificuldades escolares – ou seja à promoção da Higiene Mental na Escola. Para mim, este tema verdadeiramente identitário, o da Prevenção das perturbações da Saúde Mental e o da actuação na comunidade, nunca mais me abandonou.
A certa altura, já estudante universitária, e por razões pessoais, ausentei-me num semiexílio em França. Mais uma vez João dos Santos, a pedido de meu pai, fez uma série de diligências para amparar a minha estadia; levei comigo o conforto de inúmeras cartas de apresentação e recomendações para técnicos de renome da área da pedagogia e da Saúde M. Infantil, no sentido de poder conhecer e frequentar as respectivas Instituições onde trabalhavam. Foi um precioso auxílio naqueles duros tempos, a que se acrescentaram semelhantes orientações, por parte de Rui Grácio – meu ex-professor de Psicologia e Filosofia no liceu e então Director do Centre de Estudos Pedagógicos da Fundação Gulbenkian. Tudo foi certamente decisivo para que obtivesse uma Bolsa de Estudos destinada a cursar uma licenciatura em Psicologia, na altura inexistente no nosso país. Obtida a almejada bolsa, rumei ao Sul – à Universidade de Toulouse. João dos Santos era aí conhecido pelo responsável da faculdade, Philipe Malrieu, por terem sido ambos discípulos de H. Wallon. Foi mais uma porta “real” que se me abriu, uma vez que esses professores me facultaram o acesso antecipado à biblioteca, aos programas e bibliografia, mesmo sem estar ainda oficialmente inscrita como estudante.
Quando regressei a Portugal, em 1970, já licenciada, tive que realizar uma difícil opção de trabalho, face aos convites dos dois mentores e amigos que tanto me tinham ajudado; a minha fidelidade e gratidão aos dois especialistas em duas áreas que me apaixonavam igualmente – a investigação pedagógica (por via de Rui Grácio) e a psicologia clínica infantil (ligada a João Santos e exercida no Hospital júlio de Matos) – levaram-me a muitas hesitações!
O recuo temporal permite-me considerar que a escolha feita – a da clínica infantil-foi a adequada aos meus interesses e aptidões. Foi assim que a prática e a acção prevaleceram, mesmo sobre o natural imperativo ético de corresponder á Instituição (a fundação Gulbenkian) que me havia facultado a bolsa. Por convite de João dos Santos, regressei mais uma vez como educadora, ao H. Júlio de Matos, onde ainda vivia a minha família. Trabalhei na Clínica Infantil Meninas que havia sido remodelada desde 1951 (com a sua 1ª discípula Margarida Mendo) e por um conjunto de psiquiatras da infância que constituíram a primeira geração de especialistas treinadas e formadas por João dos Santos nos novos modelos de intervenção inovadores, da psiquiatria, da pedopsiquiatria, da pedagogia, da Psicologia, da Psicanálise e da Higiene Mental Infantil. Foi Margarida Mendo, que organizou um Hospital de Dia, transformando, com a aplicação de terapêuticas inovadoras, o pavilhão que se afastou progressivamente do estigma de asilo de pequenos alienados; passou a ser frequentado por crianças com problemas de melhor prognóstico que os anteriores doentes, gravemente perturbados. Praticavam-se algumas formas de Educação pela Arte (defendida por Arquimedes da Silva Santos e aplicada por Cecília Menano num atelier particular); exercitavam-se as crianças em sessões de psicomotricidade praticadas numa piscina interior aquecida e num amplo ginásio. Realizavam-se “saídas” pelo bairro circundante … praticavam-se formas de psicoterapia dita de “maternage”… Foram tempos épicos, duros e inesquecíveis em que João dos Santos surgia cada vez mais em público como “o especialista” em psiquiatria Infantil, inclusivamente, dando aulas por convite de meu pai, no H. de Santa Maria, sobre Psiquiatria e Higiene Mental Infantil- na cadeira do 6º ano do curso de medicina; e também proferindo conferências para a cadeira de Psicologia Médica, por exemplo, sobre “As neuroses Infantis” em 1951.
Para João dos Santos o conceito de Prevenção não tinha limites definidos e alargava-se às crianças sofrendo de doenças orgânicas, físicas ou neurológicas. Por isso, desenvolveu e trabalhou em Associações ligadas a essas perturbações tentando criar serviços de tratamento ambulatório com intuitos Preventivos – o lema era: por serem doentes estas crianças apresentavam-se mais vulneráveis psiquicamente, correndo mais riscos de alterações no seu desenvolvimento. Foi assim que surgiram: uma Associação Portuguesa de Surdos, um Centro de Profilaxia da Cegueira, a Liga Portuguesa contra a Epilepsia, a Liga para Deficientes Motores, o Centro de Paralisia Cerebral, a Associação de Pais e Amigos de Crianças com Deficiência Mental, etc. Mais uma vez João dos Santos mostrou-se como um exemplo de cidadania solidária e um grande motivador de captação de colaboradores empenhados. Recordo-me como colaborei com a Educadora Teresa Guapo na Liga contra a Epilepsia (então dirigida pela Pediatra Ana Jorge), em diferentes capitais de província do Sul de Portugal. Explicitava junto de médicos, enfermeiros e professores, que só algumas dessas crianças, necessitavam de cuidados acrescidos de pedagogia ou de tratamento psicológico para obviar certas vulnerabilidades decorrentes da sua doença e da medicação prescrita.
Entretanto, em 1963 surgiu uma nova Lei de Saúde Mental que possibilitou a criação de Centros de Saúde Mental para adultos e para crianças; eram serviços ambulatórios de atendimento, sectorizados, nos quais a equipa multidisciplinar era a unidade funcional; nos Centros Infantis, à atenção primordial da assistência aos doentes acrescentaram-se o investimento na Saúde Mental da população, por meio de medidas preventivas alargando a sua aplicação às escolas, aos médicos, aos psiquiatras e psicólogos, bem como aos magistrados e serviços tutelares de menores.
Tive o privilégio de ter deambulado vários anos em diversas equipas do Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa espalhadas pela cidade de Lisboa; primeiro, no Dispensário Central da R. João Penha (às Amoreiras), depois no bairro da Encarnação e de novo no H. Júlio de Matos. O manancial de experiências e troca estimulante de conhecimentos e práticas concretizadas em reuniões clínicas e de formação semanais, no seio de equipas de diversificadas profissões, foi um bem precioso – tenho consciência de ter beneficiado de um verdadeiro luxo!
Uma última referência para salientar que como psicóloga nos primeiros anos de trabalho no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa tive de travar uma luta para afirmar as especificidades da intervenção terapêutica e das técnicas de observação. Quando entrei era a única psicóloga não médica. Por isso tive de procurar outros serviços (em particular no COMP) onde pude desenvolver e aperfeiçoar a minha identidade própria de modo a não me diluir no estatuto exclusivo de psicoterapeuta. Ao contrário, procurei utilizar as metodologias específicas, incluindo as psicométricas, que não gozavam de apreço no Serviço. Foi preciso “engenho e arte” para as aplicar de modo próprio e inserido na equipa; recusei trabalhar “isolada” num laboratório, como se usava na altura. Penso ter conseguido. Recordo que uma vez respondi a João dos Santos que nunca me cansava de aplicar testes – eles eram sempre escolhidos para responder a perguntas de diagnóstico diferencial ou de funcionamento mental específico de cada criança. E, se o teste era sempre igual, rigoroso na sua aplicação estandardizada, a criança, essa, era sempre diferente. Portanto sempre “amei” os testes e nunca os abandonei. Para mim não havia crianças não “testáveis” – aplicar ou não um teste já era, por si, um “teste”, uma situação experimental; interrogava-me: vamos lá ver, como esta criança responde à situação. A aplicação de um teste começa nesse primeiro momento de observar e ser observado utilizando como mediador o material do teste, facilitador da relação. Sempre pensei que se testam dados ou questões que uma criança coloca a um técnico (ou ao próprio psicólogo) – não se testa automaticamente uma criança abstracta; o psicólogo constrói o exame, escolhe os instrumentos, consoante as perguntas e dúvidas colocadas e a responder. Era esta a metodologia que sempre defendi e transmiti com enorme prazer a inúmeros estagiários (as).
Resta-me agradecer a João dos Santos a confiante compreensão que dele sempre tive; e dizer-lhe um muito obrigado pelos conhecimentos e atitudes adquiridas por ter trabalhado com ele como Mestre.
A 31 de Dezembro de 2013
Maria da Graça Barahona Fernandes
Psicóloga clínica aposentada
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