Na Celebração do centenário do Dr. João dos Santos

Dra.GuidaFariaFOTOGRAFIAMaria Guida de Freitas Faria
Presidente do Conselho de Administração da Fundação LIGA
Março de 2013 

… “Há uma pré-história da Liga Portuguesa dos Deficientes Motores que resulta do meu contato com instituições do género existentes em França, mas principalmente em Paris, onde eu trabalhava. Depois há o Colégio Claparède que é o enquadramento onde as pessoas podiam e podem trabalhar e ser aceites em atividades desta natureza, de solidariedade. Começam depois a surgir ideias, bastantes originais no nosso país. Estávamos no princípio dos anos cinquenta. Eu era a pessoa talvez mais activa nesse campo porque era a pessoa central, porque me tinham empurrado para isso e talvez porque tivesse feito alguma coisa por isso. Quer dizer que de todas as iniciativas que tomei nesse sentido, não sabia bem onde é que aquilo iria parar. Por um lado, porque receava estar a copiar coisas do estrangeiro que eventualmente não seriam aplicáveis no nosso país. E por outro, não tínhamos apoios económicos e sociais que permitissem fazer coisas tão importantes como no estrangeiro. Uma das coisas que apelei na primeira reunião da direção, foi para que as pessoas fossem para lá trabalhar e levassem móveis velhos que tivessem em casa. E foi o que aconteceu. Nós pintávamos, varríamos, limpávamos a casa, pagávamos a renda, mas não tínhamos pessoal pago. As coisas apareciam por si próprias. De fato há em mim, uma tendência para lançar as ideias e pôr as pessoas a funcionar, o que me permitiria e permitiu a certa altura, afastar-me da obra e partir para outras iniciativas. De fato essa foi a primeira coisa que fiz assim e sinto orgulho. … Mas fazíamos consultas a pessoas, crianças e adultos com problemas. A dada altura chegámos à conclusão que o problema mais grave em Portugal era o da paralisia cerebral. Ninguém sabia nada em Portugal sobre paralisia cerebral e não sabiam tratar a paralisia cerebral, tratamento bastante adiantado noutros países … Fundámos seguidamente a primeira classe para a paralisia cerebral com um colega meu, o Nuno Afonso Ribeiro. Já não é citado agora, até parece que foi esquecido e contudo, fez um trabalho muito bom. Passado pouco tempo o Diretor Geral da Assistência disse-me então que havia um senhor muito rico que queria trabalhar em instituições de solidariedade e que estaria disposto a dar 12 mil contos pela sala onde funcionava o Centro de Paralisia Cerebral integrado na Liga Portuguesa dos Deficientes Motores. Naquele tempo era muito dinheiro, mas não gostei daquilo. Foi então que um grupo de Pais que já trabalhavam com a Liga dos Deficientes Motores resolveu fundar o Centro de Paralisia Cerebral, obtendo mais tarde o apoio da Fundação Gulbenkian … Num apanhado do que foi a LPDM depois da minha saída, eu diria que foi qualquer coisa de espectacular. Quando lá vou, fico absolutamente pasmado com o que fazem e como conseguem fazer com crianças multideficientes … Tenho sempre este sentimento de que a Liga, foi uma coisa muito boa, na base da qual eu e outras pessoas estivemos e que nunca desmereceu da nossa confiança, do nosso esforço de andarmos lá a pintar e a acartar com móveis para a primeira sede. Eles fizeram muito mais do que isso.

” JSantos, entrevista realizada no Colégio Claparède e publicada na revista LIGA nº1″

A 16 de Abril de 1956, são publicados em Diário da Republica os Estatutos da Liga Portuguesa dos Deficientes Motores e o Dr. João dos Santos seu fundador, de partida para Paris para terminar a sua formação de psicanalista, convida o Dr. Álvaro Andréa, para o substituir. E é por essa altura que eu entro, como voluntária e em 1960, quando se pretende criar um quadro de profissionais, colocaram-me como Diretora Técnica.

Imbuída de um sentimento de responsabilidade, ao assumir esse cargo, procurei seguir os valores e os princípios que presidiram à constituição da Liga Portuguesa dos Deficientes Motores. O Mestre que o foi na verdade, o Dr. João dos Santos, tinha deixado marcas profundas na forma inovadora como interpretara a missão da Liga. Em primeiro lugar, procurar despertar no outro o reconhecimento de si, para estimular a sua manifestação interior, expressa no sorriso, no choro ou no olhar que dispensa a palavra e liberta a interpretação singular, da visão sobre os outros e sobre os ambientes que o rodeia.

Várias vezes tive oportunidade de conversar com o Dr. João dos Santos e ainda mais com a Dr.ª Rosa Bemfeito, que para além da direção do Colégio Claparède, acompanhou sempre a LIGA. Devo-lhe muito da sua compreensão e da forma como sempre entendeu a minha busca incessante de saberes que abrissem caminhos facilitadores para a ajuda a cada uma das pessoas que nos procurava.

E nessa continua e persistente procura que ainda hoje se mantém, fomos encontrando com os clientes e seus signatários o caminho possível para cada um, não como resposta definitiva mas, como ponto de partida para a descoberta do seu espaço de participação.

À Dr.ª Rosa Bemfeito e ao Dr. João dos Santos devo a inspiração que me guiou ao longo dos mais de cinquenta anos da minha presença na LIGA. Tenho por eles uma profunda admiração, pela capacidade de criar, nas condições de deserto e ignorância em que nos encontrávamos no início dos anos 50, pela força anímica que nos transmitiam, pela aprendizagem a valorizar a diversidade nos humanos e pela determinação com que seguiam as suas convicções num tempo e num lugar onde o conhecimento chegava tarde e não havia quase espaço para os saberes.

Acabei por interiorizar essa forma de ser e de estar, com responsabilidade e muito respeito, assimilando o conhecimento alcançado e a inspiração dos exemplos de vida dos fundadores, procurando dar continuidade ao caminho iniciado, consciente das minhas limitações, mas com persistência e a visão herdada, tão fundamental para fazer caminho ao longo deste meio século de dedicação plena à Liga. Devo-lhes a confiança e o estímulo das palavras certas e o terem acreditado em mim, antes mesmo de eu tomar consciência da responsabilidade que assumia ao conduzir o longo caminho da primeira LIGA até á Fundação LIGA.

Foram dois Mestres únicos e ao assumir a continuidade do projeto LIGA, procurei manter fiel a sua visão, adequando-a ao tempo. Com o Dr. João dos Santos e a Dr.ª Rosa Bemfeito, partilhei o sonho e a aventura do percurso que fomos conseguindo fazer. O Dr. João dos Santos, esteve sempre nas sessões públicas anuais de apresentação do Programa de Ação da LIGA e a sua presença teve para mim um valor especial, ao registar desses encontros, o enorme prazer de sentir que o Mestre me apoiava. Talvez o tenha decepcionado por não querer ganhar o país, semeando Ligas locais, mas penso que, estaria de acordo hoje, submetido pela evidência de que a nossa missão não é “ser donos” de nada mas partilhar saberes e experiências e contribuir para o avanço dos saberes e das experiências . Permaneci sempre atenta aos princípios fundacionais e ainda hoje fico deslumbrada com os meus Mestres, mantendo a esperança de que se hoje visitassem a Fundação, se identificariam com o seu projeto atual.

A sociedade mudou, tal como o país e o mundo, agora global. Mas continuamos a manter um olhar míope sobre o que se apresenta diferente. A globalização permitiu uma maior aproximação dos povos e das culturas, mas ainda não conseguimos ganhar a liberdade interior e a visão de futuro que permita encontrar no outro, o que em nós falta. Na Fundação LIGA, o nosso maior património é o ideário herdado dos fundadores que vem sendo adequado à evolução dos conceitos e das ideias. Mas os princípios estão presentes e julgo poder afirmar que na LIGA, se sente a coerência dessa herança, na coragem, na persistência em se manter inovadora, enfrentando as dificuldades, no compromisso de prosseguir, fazendo caminho. Em cada etapa, há uma reflexão que nos permite avaliar e adequar o nosso passo ao novo tempo, uma sequência que resulta da própria evolução, mas assumimos fazer caminho, na plena fidelidade aos valores fundacionais, adequados às circunstâncias do agora.

E é desta forma que ao longo de mais de cinco décadas continuamos a manter viva a memória do Dr. João dos Santos, dos pais e dos seus companheiros, todos voluntários que seguiram com coragem a forte determinação do seu mentor e do nada, criaram uma associação voluntária, para acolher e ajudar as pessoas com deficiência física a primeira em Portugal. Herdámos dessa plêiada de fundadores, a instituição LIGA que hoje se ampliou em Fundação LIGA.

Guardamos na memória a mensagem de esperança e a necessidade de ser criativo, a inspiração e dedicação partilhada e principalmente a força, o querer que vence caminhos. Hoje como ontem e certamente amanhã, a principal mensagem da LIGA é de fazer de cada dia, um dia conseguido, no reconhecimento de que é com a diversidade humana que reunimos condições, para criar futuro.

 
 
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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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