João dos Santos Companheiro, Amigo e Mestre

Orlando Fialho MEDIUMOrlando Fialho
Psiquiatra, pedopsiquiatra e psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise
Presidente do Instituto de Psicanálise
6 de Setembro de 2013 *
 

O encontro com João dos Santos, a partir dos anos sessenta constituiu uma experiência única na minha vida. Eu vinha de uma Faculdade de Medicina onde os nossos Mestres eram muito distantes e austeros. O aluno estava sempre muito distante dos seus professores.

Com João dos Santos, através da minha formação em Pedopsiquiatria no Centro de Saúde Mental Infantil, por ele criado; assim como no decurso da formação analítica encontrei um Homem diferente.

Sem nunca perder a sua qualidade de Mestre, João dos Santos permitiu-se e permitiu-me viver com ele, experiências que só se podem viver com um grande amigo.

Foram inúmeras, vou apenas recordar algumas. Um dia, no final de uma supervisão, perguntou-me se eu gostaria de fazer Yoga. Falou-me das suas aulas de Yoga no Ginásio Club Português, com uma professora que ele considerava muito experiente.

Poucas semanas depois eramos companheiros nas aulas de Yoga, experiência que durou vários anos. Depois de uma das aulas da semana atravessávamos o belo jardim das Amoreiras até à Rua João Penha onde decorria uma supervisão de grupo com outros colegas em formação analítica.

O tempo que decorria entre as aulas de Yoga e as supervisões era preenchido por João dos Santos contando histórias, algumas delas com uma intenção pedagógica.

Dessas histórias, era frequente falar das suas incursões com os colegas do Centro Alfred Binet em Paris, até à Normandia e ao Monte São Michel, onde saboreava “as melhores omeletes que jamais comera”.

A obreira era a Mère Poulard, que tinha dois segredos para confeccionar as omeletes e que veio mais tarde a revelar ao João dos Santos. A frigideira, a mesma há dezenas de anos, nunca era lavada e os ovos eram batidos com manteiga. Ainda hoje guardo e pratico essa receita.

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Recordo-me de uma viagem, que fizemos ao Palácio Mateus em Vila Real de Trás-os-Montes, para um encontro de Psicanalistas. Deslocámo-nos os dois no meu Morris Mini 850. Fizemos várias paragens para petiscar incluindo numa tasca perto do Pedro dos Leitões, conhecido do João dos Santos, e que confeccionava o melhor leitão da Bairrada.

Um dos organizadores desse encontro, penso que foi o Professor Eurico de Figueiredo. O tempo estava bastante invernoso, era suposto ficarmos todos alojados em Vila Real. Nós os dois fomos surpreendidos, depois de um excelente jantar, que teríamos de ir ficar ao Palace de Vidago. Lá chegamos no meio de um fortíssima tempestade. O Hotel estava deserto, não tinha ninguém. O único empregado não tinha acesso ao bar, só nos podia servir água da torneira. Estávamos no grande Hall do Hotel, a meditar sobre aquela má sorte, enquanto João dos Santos contava algumas histórias de vampiros.

Repentinamente já perto da meia-noite, vimos através das vidraças e das bátegas de água, um corpo que se deslocava que parecia de mulher, envolta numas vestes brancas que se confundiam com o vento; como se estivesse perdida no meio da floresta.

Mobilizámos o empregado para tentar desvendar aquele mistério. Alguns minutos mais tarde aparece com a nossa colega Fernanda Vale, completamente encharcada.

Esta cena e o próprio Hotel, sempre me evocaram o excelente filme da Alain Resnais “O último ano em Marienbad”, mais precisamente o momento em que a personagem principal do filme (uma mulher cujo nome não é revelado) deambula no meio do enorme jardim como que perdida num fim de dia outonal e também ela trajando vestes brancas que esvoaçavam ao vento.

Quando a Fernanda regressou depois de mudar de roupa, João dos Santos inquiriu o empregado para saber se aquela hora na proximidade haveria uma tasca aberta onde poderíamos petiscar.

O empregado apontou-nos uma luzinha longínqua onde terminámos de madrugada, comendo rojões, bebendo vinho do Douro e ouvindo as encantadoras histórias de João dos Santos.

Nunca ouvi o João dos Santos difamar os colegas. No entanto, João dos Santos tinha um humor negro muito apurado, entre as inúmeras histórias que me contou, um dia confidenciou-me, que foi a Genève para um encontro com o Prof. Ajuriaguerra, também ele pedopsiquiatra famoso.

Em determinado momento, Ajuriaguerra perguntou-lhe por dois eminentes colegas ligados ao trabalho com crianças em Lisboa.

Prontamente João dos Santos respondeu:

“O primeiro é débil afectivo e o outro é débil profundo.”

Ao lado desta faceta humana, João dos Santos era o Mestre, sem nunca deixar de ter uma atitude humana e solidária, quer nos seminários de formação no Instituto de Psicanálise, quer nas supervisões individuais ou em grupo.

Sempre mostrou um fortíssimo respeito pelo ser humano e uma dedicação à psicanálise e à criança, sem limites.

João dos Santos além de ser um excelente psicanalista, era um grande Psicopedagogo.

A sua formação em Paris com René Diatkine e Serge Lebovici, germinou de forma vigorosa  e deixou imensos frutos.

O analista e o Psicopedagogo João dos Santos só não tiveram uma maior expressão  a nível mundial, porque viveu em  Portugal.

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 Nessa época, a psicanálise ainda estava muito amarrada à teoria pulsional; no entanto, João dos Santos transmitia-nos um saber e uma experiencia analítica, que se situava na vanguarda do melhor que se fazia em França e nos países Anglo-saxónicos. O Centro de Saúde Mental Infantil por ele criado e o tipo de trabalho que praticava, não era diferente do que se fazia em Paris ou em Londres.

Sem descurar a obra de Freud, João dos Santos na sua práxis, nomeadamente no trabalho com crianças, mostrava à evidência as suas influências anglo-saxónicas.

Na observação das crianças, João dos Santos era um criativo. Em crianças com patologias muito graves e que muitas vezes se recusavam entrar no gabinete, ele conseguia estabelecer um contacto com a criança que deixava todos os técnicos presentes e a própria família estupefactos. Nesses momentos estavam ali Freud, Klein e Winnicott para citar apenas alguns.

Tive a oportunidade de assistir a este trabalho durante vários anos; semanalmente  João dos Santos deslocava-se ao Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, onde observava uma criança, numa equipa que eu coordenava.

João dos Santos dizia:

“Não há nada melhor na vida do que sonhar, porque sonhar é pensar.

Não se pode dormir sem sonhar, como não se pode pensar sem sonhar. O sonho é a base de tudo, porque é aquilo que está na base de todos nós, do pensamento, do imaginário” (2000, p. 433).

A propósito da relação com os doentes, sublinhava que o técnico deve deixar-se conhecer.

O analista deve deixar-se observar pela criança.

John Steiner, psicanalista da Sociedade Britânica escreveu recentemente (2011) um  livro a este propósito, intitulado “ver e ser visto”.

Thomas Ogden, psicanalista de São Francisco da California, num livro recentemente editado refere: “Se o paciente não sente que aprende a conhecer o seu analista, alguma coisa falta no coração da análise: a relação analítica tornou-se impessoal.” (2012 p. 32)

Também Steiner assinala que: “só assim as boas e más qualidades do analista podem ser reconhecidas” (2011, p.  4)

Vemos com estes exemplos como João dos Santos estava avançado relativamente à sua época.

Para João dos Santos a análise do adulto devolve o paciente à vida e a análise da criança devolve-a aos pais.

A psicanálise é a aceitação da criança que existe em cada homem e, tecnicamente, a arte de permitir a cada um de se reconciliar com a sua própria infância (2000 p. 85).

Thomas Ogden actualmente considera a psicanálise como “um investimento terapêutico, que permite aumentar a capacidade do paciente para viver, tanto quanto possível, a experiência humana em toda a sua diversidade” (2012, p. 31).

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João dos Santos era um verdadeiro clínico, acreditava numa medicina que privilegiava a observação do doente, a semiologia, o verdadeiro contacto com o doente.

Não era contra os testes, exames ou medicamentos, quando tal se justificava.

No entanto, dizia aos psicólogos que para saber se uma criança era inteligente não era necessário aplicar testes. Conversando com a criança, falando com ela sobre os seus desenhos e as suas fantasias, era-lhe possível saber o grau de inteligência; situação que muitas vezes foi confirmada pela aplicação de testes.

João dos Santos, lutou muito por manter esta faceta clínica e humanizada da medicina, psiquiatria e pedopsiquiatria. A maioria dos seus discípulos seguiu-lhe o exemplo.

A formação psicanalítica, as supervisões de grupo e individuais, assim como o rico convívio extra profissional, permitiram-me viver com João dos Santos, o companheiro, o amigo e o grande mestre que nunca esqueci nem esquecerei.

Bibliografia

Branco, M. (2000). Vida, pensamento e obra de João dos Santos. Livros Horizonte: Lisboa

Ogden, T. (2012). Cet art qu’est la psychanalyse. Paris: Ithaque

Steiner, J. (2011) Seeing and being seen. New York: Routledge

 
 
 
   
*   Transcrição da conferência proferida pelo Dr. Orlando Fialho no congresso “João dos Santos no século XXI”, 6 de Setembro de 2013

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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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