
Comemora-se este ano o centenário de João dos Santos, psiquiatra, psicanalista e pedagogo (1913-1987). Foi o grande mestre da psiquiatria da infância e adolescência, tendo influenciado muitos técnicos de saúde e de educação, através da sua inteligência, saber e criatividade. Tive o privilégio de participar num seminário de observação de crianças e jovens que João dos Santos dirigiu, durante vários anos, no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria. Aí aprendi a importância de saber ouvir a gente nova e os seus pais, antes de decidir projectos terapêuticos ou intervenções educativas intempestivas. Compreendi também que a relação com a criança e o adolescente é o caminho que nos conduzirá ao seu mundo interior, por isso o terapeuta tem de se “dar a conhecer” como pessoa, antes de determinar o que fazer com quem está à nossa frente.
É verdade que João dos Santos viveu numa época em que os conhecimentos neurobiológicos eram incipientes e as formulações teóricas sobre a doença mental muito especulativas. Tudo era explicado pelas perturbações da relação da infância ou pelas vicissitudes do desenvolvimento em famílias perturbadas: hoje sabe-se que há crianças com doenças “mesmo” biológicas, outras com temperamento difícil desde uma fase muito precoce da vida, outras ainda com disfunções de causa genética que as tornam particularmente vulneráveis. Assim, deveríamos ser agora capazes de ter uma visão mais aprofundada dos mecanismos geradores do mal-estar infantil e, se não tivermos uma visão dogmática, poderíamos dar uma resposta terapêutica integrada de melhor qualidade. No entanto, é também agora evidente o excesso de medicação em muitas situações, o provável exagero no diagnóstico de hiperactividade com défice de atenção e o recurso excessivo a institucionalização de crianças e jovens, em muitos casos sem o necessário trabalho prévio com as famílias de origem (existem cerca de 11.000 menores de 18 anos em regime de institucionalização), para não falar da escassez de técnicos com boa formação em saúde mental infanto-juvenil.
Os novos conhecimentos, todavia, deveriam tornar ainda mais conhecida a obra de João dos Santos. Porque poderemos conhecer bem o cérebro de alguém, mas se não nos relacionarmos com essa pessoa de modo intenso, pouco saberemos se vai ser honesto ou ladrão, ou desconheceremos como irá reagir em circunstâncias que o obriguem a fazer escolhas no plano moral.
Ao fundar com Manuela Ramalho Eanes o Instituto de Apoio à Criança (a que, aliás, queria apenas chamar Instituto da Criança), João dos Santos chamava a atenção para a necessidade de uma verdadeira cultura da criança. Tal significa que a criança não tem sempre razão (como vejo ser defendido por alguns pais permissivos), mas quer dizer que o respeito pelos mais novos deve constituir um pilar essencial da organização de uma sociedade. As crianças e os idosos, os mais vulneráveis, devem merecer todo o apoio, em todas as circunstâncias.
Saiu agora a público o meu novo livro Diário dos Tempos de Crise, uma selecção de textos publicados nesta revista. Embora sempre presente no meu pensamento, não está lá expressa, como deveria, a minha homenagem ao meu mestre João dos Santos, que agora aqui ofereço aos leitores.
* Professor Doutor Daniel Sampaio Professor Catedrático de Psiquiatria e Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Lisboa ** Texto publicado na Revista 2 do Público, domingo, 15 Setembro 2013 © 2013 joaodossantos.net. Todos os Direitos Reservados / All Rights Reserved.