PERCURSOS IDENTITÁRIOS

 
Dr Augusto Carreira MEDIUMAugusto Carreira
Pedopsiquiatra
Presidente da Associação Portuguesa de Psiquiatria da Infância e Adolescência
6 de Setembro de 2013 *
 

Antes de entrar propriamente no âmbito das minhas reflexões sobre o que nos trás aqui hoje, queria dizer-vos que foi para mim um motivo de grande satisfação e uma honra, poder participar nesta comemoração, e aqui e ali na sua organização, enquanto representante da APPIA. A contribuição que a nossa Associação possa ter dado para estas comemorações, ficará sempre muito aquém do LEGADO que recebemos de João dos Santos.

O Colóquio que se inicia hoje e todas as iniciativas ligadas à comemoração do Centenário decorre de uma realidade, creio eu partilhada por todos aqueles, que de forma entusiástica a ela se associaram: O Legado científico e humano de João dos Santos impõe-se-nos como tema de reflexão actual, incontornável, e ao mesmo tempo como fonte de inspiração permanente.

Podemos falar de Legado Transgeracional, na medida em que são já várias as gerações influenciadas pelo pensamento de João dos Santos, e que de forma criativa e renovada se têm empenhado na passagem desse testemunho.

Nem toda a obra científica permite este trabalho de recriação. Nem sempre é possível esta introjecção fecundante. Para tal é necessário que o pensamento que a originou tenha essa capacidade rara de estimular o pensamento do Outro, de se oferecer não como portador de dogmas ou verdades absolutas, mas antes de interrogações e inquietações; de se oferecer como modelo inacabado, como referência incompleta. O mesmo é dizer, despido da auto-suficiência do pensamento narcísico.

Por isso mesmo este pensamento se tornou fonte, onde tantos beberam e continuam a beber – de vários quadrantes e formações – o que atesta também a sua diversidade e riqueza.

Não se afirma como modelo ou referência identitária quem quer. Só aqueles que reúnem as condições, eu diria, necessárias e suficientes; e na minha opinião João dos Santos reunia essas condições.

Já tive ocasião de dizer e de escrever, que o meu contacto com João dos Santos foi infelizmente breve. Mas talvez por isso, foi um desses brevíssimos encontros, que me permitiu vivenciar esse momento único em que irrompe e nasce o fenómeno identificativo que nos marca felizmente para sempre. Permito-me pois a partir dele, desenvolver estas simples reflexões, que mais não são que o testemunho do impacto que em mim teve esse breve encontro.

Tinha iniciado o meu percurso na Psiquiatria Infantil há meia dúzia de meses e também com pouco mais de meia dúzia de consultas feitas a sós. Começava também a ensaiar essa experiência de apresentar casos clínicos à equipa, experiência que bem sabemos vem ao princípio carregada de ansiedade, dúvidas e inquietações. Naquela 4ª feira tinha-me calhado a mim a apresentação. Escolhi, pois claro, uma 1ª consulta feita alguns dias antes. Só que, nessa 4ª feira, o Dr. João dos Santos resolveu aparecer na João Penha e assistir à reunião de equipa. O que nunca mais se repetiu; e logo naquele dia. Nada a fazer. Não havia como evitar.

– Vai em frente e seja o que Deus quiser, pensei.

A apresentação saiu de forma atabalhoada, nada me soava coerente ou compreensível. Os apontamentos que levava de nada me serviram e até a mim, a história que queria transmitir me parecia absurda. Era uma equipa onde se discutia muito, muito interventiva, onde quase nada ficava por dizer. Ouvi as opiniões, críticas e sugestões de toda a gente, menos do Dr. João dos Santos. Seguiu-se um daqueles momentos de silêncio, interminável, pelo menos para mim. A certa altura o Dr. João dos Santos levanta-se, e já de pé, diz-me:

– Olhe, faça lá a 2ª consulta para se perceber essa história melhor e vá ter comigo ao meu consultório que eu faço-lhe a supervisão deste caso. E mais não disse. Estupefacção geral. A minha sem dúvida a maior de todas.

– Ficou preocupado por um caso tão complicado ter ido parar às mãos de um iniciado – foi o meu primeiro pensamento – o que provavelmente também correspondia à verdade.

– Percebeu a minha angústia de principiante e resolveu poupar-me; mas também ou sobretudo, amparar-me… senti a seguir.

Tinha João dos Santos 10 anos, presumo que ainda não teria lido Freud, quando este escreveu “ o investimento no objecto e a identificação, não são distintas uma da outra inicialmente”. A Identificação primária é pois aqui concebida como o estabelecer de um elo com o objecto, sob a égide das pulsões de auto-conservação, exactamente quando o EU nascente percebe a sua fragilidade e sente a necessidade de se apoiar e escorar no objecto – num outro EU capaz de o amparar na sua fragilidade. Claro que Freud se referia à relação inicial, primária, com o objecto materno. Mas foi exactamente o que eu senti há muitos anos, face à fragilidade do meu EU nascente neste percurso que tinha decidido trilhar. Senti-me sobretudo, amparado e apoiado.

Parti para a 2ª consulta, onde procurei exercitar todos os meus recursos perceptivos-cognitivos-emocionais. Não podia deixar escapar nada, e desta vez levar material que me redimisse daquela 4ª feira.

Entram mãe e filha (teria esta 5 anos acabados de fazer) para o gabinete. A criança dirige-se de imediato para o canto dos brinquedos; convido a mãe a sentar-se. Mas para meu espanto esta permanece de pé e diz-me:

– Dr., vim só para lhe dizer que o que lhe contei na outra consulta, era tudo mentira. A Rosa (é verdade, foi num tempo em que as meninas ainda podiam ser Rosas), nem sequer é minha filha, e eu vou partir hoje para Espanha e vou levá-la comigo. É minha afilhada e os pais não a podem criar. São muito pobres. Só queria saber se ela é normal, mas acho que é. Obrigada na mesma. Pegou na mão da Rosa e abalou.

Poupo-vos à descrição do meu estado de estupefacção e desorientação. Aquilo não podia estar a acontecer. E a minha supervisão? E que iria dizer o Dr. João dos Santos? Demorei tempo a recompor-me.

Hesitei se deveria ir à supervisão. Que iria eu lá fazer? Pensei telefonar a explicar o que se tinha passado; mas depois achei que seria uma oportunidade para que me explicasse as asneiras que tinha feito, o que é que eu deveria ter percebido e não fui capaz. Por isso no dia aprazado lá me dirigi ao consultório do Dr. João dos Santos, que me recebeu jovialmente:

– Então vamos lá trabalhar. Como é que correu essa 2ª consulta?

– Não houve 2ª consulta; quero dizer, houve; ou melhor, não houve…

João dos Santos olhava para mim com um ar entre o divertido e o intrigado.

-É que a mãe chegou, entrou no gabinete e disse-me:

-Dr., tudo o que lhe contei no outo dia era mentira. Eu nem sequer sou a mãe. Vocês já sabem o resto.

João dos Santos olhou para mim com um sorriso que me tem acompanhado ao longo da vida e em que julgo ter vislumbrado quase todos os cambiantes que um sorriso pode encerrar: divertido, trocista, irónico, tolerante, mas acima de tudo compreensivo.

– Deixe lá-não faz mal. Fica para a próxima. Despediu-se e despediu-me.

Fica para a próxima! Que bem me soube aquela porta aberta para o futuro. Afinal não me tinha dado nenhuma lição. Podia ter aproveitado para me ensinar que a mentira não existe quando estamos com os nossos pacientes, com as famílias e com as crianças. E que frequentemente o que chamamos de mentiras, encerra quase sempre verdades mais eloquentes que os discursos rigorosamente colados e fieis à realidade. Podia pois claro, dar-me uma lição recorrendo ao seu saber e à sua experiência. Podia ter-me confrontado com a minha inexperiência e ignorância. Mas limitou-se a dizer- fica para a próxima! Não ouve próxima. Quero dizer, não me tornei a sentar à sua frente para uma supervisão. Mas talvez aquele sorriso à despedida me tenha acompanhado como uma supervisão permanente. É que eu também julguei ver nele uma outra mensagem: “eu acho que um dia vais ser capaz de perceber que para nós não existem mentiras e vais procurar entender o que elas escondem”. Eu quis acreditar que ele acreditava que eu seria capaz de fazer o meu percurso. E como isso foi e tem sido importante!

Tinha João dos Santos 10 anos, quando Freud escreveu a propósito das identificações: “os investimentos no objecto são abandonados e substituídos por uma identificação…”

Falamos aqui já de Identificações secundárias.

O nosso percurso profissional só é possível se for escorado em referências que se constituam como faróis que nos vão iluminando o caminho. Que se ofereçam como Ideais de um EU (profissional) em construção. Como escreveu Janine Chasseguet-Smirgel, psicanalista francesa, “o Ideal do Eu é uma construção fantasmática ou se quiserem uma instância cujo fim é o de reencontrar um sentimento de completude narcísica… o Ideal do EU modifica-se, é um processo maturativo”. Tal como Freud enunciou em 1914 – e nessa altura João dos Santos não o tinha lido – “O ideal do EU é uma projecção no futuro – que nasce de um desejo de realização, que tenha em conta a realidade.”

Identificarmo-nos ao Mestre não é identificarmo-nos às suas ideias, nem tão pouco aos seus ideais. Será sobretudo identificarmo-nos à sua capacidade de criar, à sua capacidade de acreditar e de realizar, e por consequência sermos capazes de criar os nossos próprios ideais e de os realizarmos. Da parte dos mestres, como dos pais, será necessário que não invistam os discípulos e os filhos como sub-produtos da sua própria realização narcísica, sob pena de os esmagarem com um pensamento invasivo e omnipotente. A renúncia a esse investimento narcísico – que permita aos discípulos a escolha dos seus próprios ideais – pressupõe da parte dos mestres uma suficiente construção narcísica que dispense investimentos de retorno. Que sejam capazes de dispensar essa admiração alienante exigida pelo pensamento totalitário, ainda que muitas vezes disfarçado de erudição.

Por isso – e no que me diz respeito – me interessei por João dos Santos, pelo HOMEM e pela Obra. Por isso me serviu de farol e de ideal.

Para terminar, e já que falei de Legado, Transmissão e Identificações, queria expressar a minha admiração à Paula com quem partilhei também parte do meu percurso profissional, e ao Luis que só agora conheci. Esta comemoração é bem o exemplo do que vos procurei transmitir:

Mostrar a Obra, as suas múltiplas e fecundas transformações, dá-la a conhecer desta forma tão viva e empenhada, é bem o exemplo dessa profunda identificação ao Pai e como disse, sobretudo à sua capacidade de acreditar e de criar.

Referências:

Freud S, (1923) – “O Eu e o Id”

Freud S, (1914) – “Para Introduzir o Narcisismo”

Janine Chasseguet-Smirgel, (1973) – “Ensaio sobre o Ideal do EU”

 
 
 
 
*   Transcrição da conferência proferida pelo Dr. Augusto Carreira no congresso “João dos Santos no século XXI”, 6 de Setembro de 2013

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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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