
Conheci João dos Santos em Maio de 1970 quando, a convite da recém-criada estrutura sindical dos educadores de infância (da qual eu fazia parte), ele orientou o I Curso sobre a Educação Estética da Criança para educadores, em colaboração com Maria Manuela Valsassina Heitor. Essa iniciativa originou depois um trabalho muito interessante nos Institutos de Reeducação do Ministério da Justiça, com as crianças ali internadas e realizado pela Marinella Valsassina e sua equipa. Os dois primeiros capítulos do livro Educação Estética e Ensino Escolar, escritos por João dos Santos e publicados em 1966 foram a referência que guardei desse primeiro contacto, no início da minha vida como educadora de infância e que sempre utilizo nas formações que oriento.
Na verdade, o meu conhecimento da sua obra e maneira de ser cresceu à distância, o que não impediu que se tornasse para mim um verdadeiro mentor. Lia tudo o que dele se publicava e tinha a referência constante que a ele faziam as minhas colegas da área da psicologia, agora já na formação dos futuros educadores, na Escola Superior de Educação Maria Ulrich. Os seus artigos no Jornal da Educação, que deram lugar aos Ensaios de Educação I e II (ed. Livros Horizonte,1982-1983) marcaram muitas gerações de profissionais da infância, para quem continuam a ser referência.
O ano de 1979 foi proclamado pelas Nações Unidas como Ano Internacional da Criança. Muitos meses antes começou a sua preparação e em Portugal foi criada a Comissão Nacional para as respectivas acções e comemorações. Tive o privilégio de ser convidada a integrar esse grupo de pessoas experientes (eu era das mais jovens e com um percurso profissional incipiente!) do qual fazia parte João dos Santos. Foi aí, nas reuniões da Comissão e através das iniciativas que se desenvolveram, que melhor o conheci e que muito aprendi.
Talvez o que então mais me impressionou foi a sua forma discreta mas directa de dar respostas ou fazer comentários desconcertantes e no sentido inverso da maior parte dos interlocutores… recordo o caso de duas crianças que sofreram maus-tratos por parte dos pais e que foi noticiado então com grande destaque pela comunicação social. O acontecimento provocou na Comissão do AIC indignação e propostas de tomada de posição pública, urgente… João dos Santos quebrou de imediato o nosso furor explicando-nos pacientemente o que está referido no livro Vida, Pensamento e Obra de João dos Santos: “Cada criança constrói a imagem materna ou paterna (e organiza os respectivos imagos), em parte com a imagem das personagens reais, em parte com aquilo que a sua fantasia idealizou nelas. O abandono ou separação aumenta a idealização e, assim, pode acontecer que uma criança separada dos seus pais possa criar uma imagem idealizada do progenitor que a sociedade não tem o direito de destruir.” (pág. 118).
A Comissão era muito solicitada para que orientasse encontros com pais sobre temas ligados à infância. Pedimos a João dos Santos que fosse o orador numa dessas reuniões e logo se propuseram temas e recados para o efeito, no entanto ele disse-nos imediatamente que não colaboraria em nada que pretendesse ensinar os pais a serem pais! A partir desta chamada de atenção, foi possível conceber, na Comissão, uma serie para a televisão chamada Manuel e Beatriz que visava sensibilizar os pais para o crescimento equilibrado dos seus filhos nos primeiros anos de vida mas evitando tornar-se um conjunto de receitas… produzido por uma equipa de luxo ( Mª Alberta Meneres, António Torrado, o realizador Luís Andrade) foi talvez a iniciativa do Ano Internacional da Criança que maior projecção teve na sociedade portuguesa de então.
Recordando esses cerca de dois anos de reuniões, colóquios por todo o país, iniciativas locais e nacionais, admiro o espírito de grupo que se criou entre pessoas tão diferentes como João dos Santos, Matilde Rosa Araújo, Armando Leandro, José Miguel Ramos de Almeida, Manuel Abecassis, Judite Grilo, Seabra Diniz, José Barata Moura… as diferenças profissionais, ideológicas ou mesmo partidárias foram postas ao serviço de um bem maior, o da criança portuguesa, e as divergências ajudaram a formar critérios e orientações mais adequadas. Para isso o desassombro de João dos Santos foi determinante.
Nasceram no seguimento desse período o Instituto de Apoio à Criança, pelo qual João dos Santos tanto lutou e um livro editado pelo IAC, Crescendo e Aparecendo. O livro foi organizado a partir da serie televisiva Manuel e Beatriz e está, infelizmente, esgotado mas a pedir reedição urgente pela sua permanente actualidade. Ele abre precisamente com um texto belíssimo de João dos Santos, Como a Criança se faz Homem, e que desde a sua publicação é aquele que nós, formadores de educadores e de cuidadores de crianças, sempre utilizamos…
A terminar, gostaria de deixar uma reflexão sentida. Quando, no início da década de 80, se realizaram os primeiros Simpósios Internacionais sobre o desenvolvimento da criança, graças à iniciativa e ao empenho do Professor Doutor Gomes Pedro, muitos de nós na área da pedagogia e da formação reconhecemos e identificámos nas comunicações de Brazelton e de tantos outros cientistas de renome mundial o que havíamos aprendido com João dos Santos e com a sua vasta experiência científica e humana.
Expresso deste modo o respeito e a gratidão a quem marcou profundamente a minha forma de ver a criança e a minha carreira profissional de formadora de educadores.
Maria João Ataíde
Abril de 2013
*Educadora de infância e formadora de educadores
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