João dos Santos e a Moderna Psiquiatria da Infância

 
Maria Jose Vidigal MEDIUMMaria José Vidigal
Pedopsiquiatra e psicanalista
7 de Setembro de 2013 *
 

João dos Santos foi o criador da moderna saúde mental infantil em Portugal e o grande impulsionador na viragem da psiquiatria infantil.

Mas mais: devolveu-nos um novo olhar sobre o desenvolvimento da criança e sobre a educação na família, na escola e na comunidade, criando concepções originais para a formação de pais e professores.

Lutou pela criação de serviços de saúde mental que continham as sementes da prática e dos princípios científicos que preparavam o futuro.

Criou uma obra que ainda hoje ajuda a compreender as causas mais profundas do sofrimento psíquico da criança, do adolescente e do jovem.

Mas o seu interesse também se estendia em chamar a atenção para a responsabilidade de cada um na vida púbica e tinha uma relação muito viva com a arte e os artistas.

João dos Santos tinha uma particularidade, que irritava profundamente sobretudo os médicos — não dava bibliografia. Mas, como dizia uma outra psiquiatra já falecida (Margarida Mendo): “Ele não dizia leia isto ou aquilo… mas ao pé dele ficava-se mais inteligente e o que ele nos ensinava não vinha  nos livros!

João dos Santos defendia o sonhar e o pensar para se opor à administração indiscriminada de drogas, que apenas faziam bem aos calos e à queda do cabelo, como ironizava.

Há cerca de 50 anos dizia que o mais importante no nosso trabalho consistia em estabelecer, em primeiro lugar, uma relação com os pais consultantes, depois com a criança cliente, ambos potencialmente clientes, tendo necessidade de cuidados.

Estabelecer com os pais uma aliança terapêutica constituía um elemento-chave no tratamento e a ambição é a de tornar a sua existência e a dos filhos mais suportável.

Para João dos Santos nao fazia sentido, estudar a psicologia ou a psicopatologia da criança como um ser isolado — estabelecer uma relação humana entre eles, é o objectivo do especialista. Daí o facto de ser perigoso fazer uma aliança com a criança contra os pais.

No entanto, tornar relevante o seu papel, nao é de modo nenhum culpabilizá-los. Mesmo, por vezes, quando a atitude dos pais é de profunda hostilidade, apenas serve para esconder a angústia.

A construção da saúde mental inicia-se na infância precoce, diríamos mesmo antes do nascimento, e a investigação nesta área, no nosso país, teve início com João dos Santos, há cerca de 50 anos, que teve depois continuidade com Maria José Gonçalves e a sua equipa.

Se toda a educação tem que ser poética, como afirmava Jacinto Prado Coelho, João dos Santos seria o Poeta da Criança e o seu Evangelho como dizia Matilde Rosa Araújo.

É necessário dar a conhecer o psiquiatra, o médico, que introduziu a modernidade na maneira de ver e de estar com a criança, e que ainda mantém actualidade. Espero que nada disto se perca porque faz parte do nosso património científico e humano.

Uma primeira grande lição, à época verdadeiramente revolucionária e isto sem cair em exageros: as famílias e as crianças que atendemos nos serviços públicos merecem-nos tanto respeito como as que atendemos no privado.

João dos Santos criticava e lamentava a indiferença das entidades superiores, quando defendia a necessidade e a obrigatoriedade de se estabelecerem medidas preventivas. E esses programas seriam mais facilmente exequíveis ao nível dos Serviços Materno-Infantis dos Centros de Saúde.

Daí ter iniciado essa intervenção no Centro Materno-Infantil Dona Sofia Abecassis e, anos depois, no Centro Polivalente Domingos Barreiro.

Hoje pode ser uma intervenção corrente e banal, mas naquela época, era profundamente original, mesmo a nível europeu. Experiência idêntica era realizada no Estado de S. Paulo (Brasil) pelo Professor Yan, mas sem terem conhecimento um do outro

Outra característica a sublinhar: nunca impunha os seus pontos de vista ou por não se julgar o detentor da verdade ou por respeito ao outro? De facto, ele tinha a atitude do cientista que caminha cautelosamente nas suas explorações da mente e das relações, sem certezas absolutas…

Por motivos políticos (ligação ao MUD – Movimento da Unidade Democrática e de ter assinado um documento a pedir eleições livres) foi demitido do cargo de 1º Assistente no Hospital Júlio de Matos.

Daí o facto de ter partido para Paris em 1946 onde trabalhou durante quatro anos no Centro de Pesquisas Científicas de Franca e no Laboratório de Biopsicologia da Criança, onde contacta com grandes nomes da Psicologia, Psiquiatria e da Psicanálise. Assim, trabalhou com Wallon, Heuyer, Ajuriaguerra, Henri Ey, depois com Diatkine, Serge Lebovici. Estes dois últimos seguiram as novas correntes psicodinâmicas e depois tornaram-se psicanalistas. Lebovici foi o pioneiro da psicanálise infantil em Franca.

Em 1947, foi admitido pela Comissão de Ensino na Sociedade Psicanalítica de Paris e, em 1950, regressou a Portugal.

E não parou: criou ou ajudou a criar uma série de instituições ligadas aos deficientes motores, as crianças surdas, cegas; fundou com Maria de Lourdes Levy e Dora Bettencourt a Liga Portuguesa contra a Epilepsia e colaborou na criação do Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa, do qual foi o 1º director.

Foi o inspirador do IAC – lnstituto de Apoio a Criança.

E promoveu colóquios, seminários para alertar os técnicos e políticos para os problemas das crianças. E, como disse Sousa Monteiro ele criava coisas não para as reter mas para as lançar.

E em 1985, a Faculdade da Motricidade Humana atribuiu-lhe o título de Doutor Honoris Causa.

Desde muito cedo (anos 40 do século passado), João dos Santos esteve ligado aos problemas da educação, quer estudando e discutindo com outros companheiros, quer no plano prático, dialogando com as meninas órfãs e asiladas ou outros meninos das escolas dos Bairros Populares de Lisboa.

Estabeleceu contacto com Maria Amália Borges a quem se deve a redescoberta da grande aventura Pedagógica de Freinet e dos métodos da Escola Moderna, nesse Portugal cinzento e amordaçado.

Aliás, podemos dizer que esteve ligado a todas as correntes modernas e inovadoras no nosso país, quer da área da pedagogia quer da área da saúde mental infantil.

Para João dos Santos, a Arte de Educar e a Arte de Curar seriam idênticas nas suas bases.

A Arte de Educar, de Curar e Amar são uma e a mesma coisa, na esteira de Freinet para quem educar é um acto de amor.

Se a criança entender o verdadeiro valor da amizade e a importância da partilha, a vida será mais simples e maior alegria tirará com o passar dos anos. Assim, o segredo da vida não é ter tudo o que se quer, mas amar tudo o que se tem.

Ao tomar posse de Director do Centro de Saúde Mental Infanto-Juvenil de Lisboa, na segunda metade da década de sessenta, com um número mínimo de técnicos e alguns voluntários, tomou contacto com todas as instituições de Lisboa e Grande Lisboa, que se ocupavam de crianças, quer da Paralisia Cerebral, quer da Crianças Cegas, Surdas, das Crianças Abandonadas; além das reuniões com a Misericórdia.

Outra intervenção que achava essencial na formação dos técnicos, qualquer que fosse a sua especialidade, era a articulação com a Justiça. É preciso dizer-se que o Juiz Armando Leandro (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça) foi a peça fundamental nesta ligação.

Este exemplo leva-nos a pensar que estes Homens eram raros no nosso panorama cultural.

João dos Santos lamentava que as autoridades de saúde mental manifestassem um total desinteresse pela prevenção, e creio ter sido este um dos factores que o levou a interessar-se pela Educação, acreditando que seria no período escolar, o último da vida da criança, em que poderiam ainda ser eficazes as medidas preventivas. E assim em 1970, durante cinco dias, realizou-se no Hotel do Porto Novo, no Vimeiro, um seminário de Higiene Mental na Escola, onde estiveram presentes, além das equipas de Saúde Escolar, André Berge, Rui Grácio, Bairrão Ruivo e tantos, tantos outros, muitos já falecidos.

Pode concluir-se que a Saúde Mental não é um campo estritamente médico e é um assunto demasiado sério para ser entreque só aos psiquiatras, daí o facto de ser necessária a contribuição de sociólogos, urbanistas, filósofos, educadores e políticos.

Ao afirmar que a “arte da vida consiste em saborear o mel da vida mesmo quando a adversidade nos atinge…” levou-o a preocupar-se com a prevenção, como poucos o fizeram.

Para João dos Santos, a prevenção e a investigação são as actividades nobres da saúde mental infantil. Defendia que uma ética do futuro devia fundar-se na audácia, até na execução de “actos clandestinos” para melhor poder ajudar as crianças e os jovens. Sem dúvida que poderá ser uma utopia mas, como diz Victor Hugo, “a utopia é a verdade de amanhã”.

É importante dar a conhecer o psiquiatra, o médico, que introduziu, em Portugal, a modernidade na maneira de observar e estar com a criança, e que ainda mantém uma actualidade impressionante.

Se é verdade que a sua voz nem sempre foi ouvida e que dos seus projectos muitos ficaram na gaveta, também é verdade que o nome de João dos Santos está, ainda hoje, ligado à vontade colectiva de criar, na fantasia ou na prática, de muitos profissionais da área da saúde mental infantil.

Também não esqueceu os administrativos, defendendo uma maior aproximação destes com os técnicos, para se obter uma maior a-colaboração e b-compreensão do trabalho que se desenvolvia. Por essa razão, era à noite, uma vez por mês, que se realizavam reuniões, onde estavam técnicos e os administrativos mais graduados, para discussão de alguns temas teóricos.

Se não se passar para as administrações e para os gestores a importância da saúde mental infantil, as soluções tornam-se muito mais difíceis.

E deve-se a João dos Santos o entendimento deste facto aparentemente banal.

De igual modo não podemos esquecer a sua atitude para com os técnicos, o respeito pela autenticidade das suas atitudes, que ele bem sabia distinguir.

João dos Santos também não esqueceu os pais, para além do seu interesse pela criança.

Torna-se cada vez mais difícil para a família constituir-se como um espaço para a organização mental da criança, sendo mais um espaço desorganizador dos afectos e do pensamento.

Havendo uma perspectiva de vida mais longa, é indispensável promover o elo entre avós e netos para a saúde das 3 gerações! Paradoxalmente, o que se assiste é a tendência para o isolamento da família nuclear…

Aqueles tempos que criaram Escola, com raízes nas experiências mais avançadas da Europa, deixaram referências obrigatórias na formação dos especialistas actuais. Apesar da crise e do desalento dos técnicos de então, acreditava-se que os horizontes não podiam ser negros e “que o saber só avança quando se é capaz de olhar a vida!

E de tudo quanto foi dito, entende-se que se continua a vislumbrar o futuro em João dos Santos, vista que permanece viva e que as suas noções de saúde mental da criança e de prevenção, continuam perfeitamente actuais!

Pergunta-se: – Vale a pena continuar a utopia?

E assim escreveu o poeta, o psicanalista, o psiquiatra João dos Santos:

“Por pouco não matei toda a gente, para ficar só com os bons, os sábios e os inteligentes.

Cansado de procurar a verdade, acabei por matar em mim o desejo de matar!…”

Provavelmente como acontece com todos nós?…

E ainda dizia mais: que a sonho era o que persistia par toda a vida do Homem, coma forma mágica de pensar…

 

RESUMO:

A A. refere que teve o privilégio de conhecer e de trabalhar com João dos Santos, o que lhe permite dar a conhecer o psiquiatra, o médico, o pedagogo, que introduziu em Portugal a modernidade na maneira de observar, de estar com a criança, e que ainda mantém actualidade.

Se desde muito cedo (anos 40 do século XX) esteve ligado aos problemas da educação, também lutou em vão pela necessidade dos serviços de saúde materno-infantis estabelecerem medidas preventivas ao nível da Saúde Mental Infantil. Considerava que a saúde mental não era um campo estritamente médico e que era um assunto demasiado sério para ser entregue só aos psiquiatras, necessitando da contribuição de sociólogos, urbanistas, filósofos, educadores.

Para João dos Santos, a prevenção e a investigação são as actividades nobres da saúde mental infantil.

 
 
 
 
*   Transcrição da conferência proferida pelo Dra. Maria José Vidigal no congresso “João dos Santos no século XXI”, 7 de Setembro de 2013

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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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