A irrecuperabilidade da deficiência não faz sentido*

Pedro Morato MEDIUMPedro Parrot Morato
Professor de Psicopedagogia da Faculdade de Motricidade Humana
Universidade de Lisboa
Setembro de 2013

Agradecendo aos filhos de João dos Santos, Paula e Luis, o convite para participar nesta publicação de testemunhos dedicada a comemorar o centenário do nascimento de João dos Santos, aceitei com orgulho mas por dever também de não poder rejeitar a oportunidade de me rever com ele, João dos Santos, relendo-o, “ouvindo-o” dizer-nos aquilo que pensava acerca da infância com deficiência, das suas famílias e das respectivas dificuldades.

Trabalhei na Casa da Praia no direto com João dos Santos dois anos no princípio dos anos 80, depois e até sempre, provavelmente, o que penso e o que sinto sobre a infância e o que faço como Professor de Psicopedagogia não consegue desancorar da referência humana, ética, técnica e científica de João dos Santos e que me acompanha até hoje. Sobre aquilo que aprendi com João dos Santos acerca da deficiência da criança, ou melhor dito sobre as Perturbações do Desenvolvimento da criança, foi a ver o problema da família e a criança com deficiência e não como é ainda comum erradamente, a ver a perturbação da criança em si mesma. Esta nota foi relevante na minha compreensão mais sistémica da relação criança-família, porque de fato sendo indiscutível a importância do comprometimento da criança com uma condição de dificuldade, o primeiro pensamento de João dos Santos é dirigido à família e aos pais em particular por tudo o que de agravante ao referido comprometimento da infância, a depressão, a desilusão, a ansiedade, a perturbação, a culpabilização, a permissividade ou a rejeição conscientemente ou inconscientemente, vai acrescentar, poder-se ia dizer ironicamente, como se não bastasse a vicissitude de alguém menos capacitado pelas suas características específicas ainda tem de aumentar a essa vulnerabilidade a dificuldade devida à compreensível perturbação dos seus pais.

“A irrecuperabilidade da deficiência não faz sentido”. Esta frase de João dos Santos obriga-nos a recuperar a época em que se pode situar a rutura epistemológica sobre o pensamento estruturado acerca das deficiências humanas. Para João dos Santos a respeito dos problemas “dos deficientes”, dizer-nos que a “irrecuperabilidade não faz sentido” é afirmar de forma exemplar e explicita a sua convicção positiva colocando-se do lado daqueles que compreendem o desenvolvimento humano determinado pela coexistência, “toda a existência é coexistência”. Recordando o tempo pós revolução francesa com Jean Itard, médico mas talvez mais bem observado, um pioneiro da psicopedagogia, portanto há mais de 200 anos (1805), quando face ao derradeiro diagnóstico do seu Mestre Pinel sobre a condição dum jovem de Aveyron, apanhado a viver na floresta, “batizado“ depois com o nome de Victor, que seria à luz do conhecimento científico da época “um idiota irrecuperável”. De fato para Itard contrariando a visão “científica possível”, o jovem Victor seria antes uma criança em grandes dificuldades de adaptação social mas a sua maior perturbação era uma profunda carência afetiva, o seu “estado selvagem” derivava duma condição de sobrevivência isolada do contato humano e acreditou que a mudança do contexto para um ambiente civilizado, nomeadamente humanizado em coexistência, seria a hipótese de se verificar uma recuperação com base na interacção, pelo afecto, pela comunicação, na aprendizagem sensório-motora diversificada quanto do meio o ser humano depende para se desenvolver. É nesta perspetiva que João dos Santos nos avança que durante a infância em particular e até à adolescência qualquer condição humana deficiente tem sempre que ter um desenvolvimento quanto mais adaptado, quanto se fizer por isso, ou seja, existe sempre evolução desde que se invista o mais cedo possível até onde for possível e de forma inconformada quase como uma utopia mas com bom senso e sem confundir a condição indispensável duma expetativa positiva com aquela muitas vezes propagada de normalização, ou seja, ou fica normal ou então não vale a pena, como se a normalidade humana fosse cientificamente fácil, para além do que é o conceito meramente estatístico, tal como foi outrora à falta de melhor ciência se fez o que se fez (e ainda se vai fazendo).

Para João dos Santos esta visão é apenas e só desumana, por isso sendo médico mas por ter feito formação em pedagogia como Professor de Educação Física, defendeu sempre que a interação, em particular a relação humana é a essência da nossa existência. Entre nós demonstrou-nos em diferentes contextos das práticas profissionais da medicina, da psicologia e da educação que a essência curativa dos males adaptativos está na relação humana autêntica, praticada por convicção. Tal como com Itard, João dos Santos deixa-nos o ensinamento que a condição de dificuldade do desenvolvimento é sempre recuperável, que a capacidade intelectual é modificável e que preferencialmente a melhor e mais esperançada resposta às necessidades duma criança com deficiência é a intervenção educativa precoce centrada na família numa perspetiva relacional afetiva e positiva, pais e criança, numa estimulação adaptativa sensório-motora promotora de aprendizagem das regras, de autonomias, de alimentação, de higiene, do auto-cuidado, de socialização lúdica, de comunicação, de vivências com a natureza etc, …

Entre nós no âmbito das atitudes face às pessoas com deficiência, regista-se indiscutivelmente uma significativa mudança liderada pela Sociedade civil que nos permite afirmar com orgulho, a solidariedade, o respeito e uma ética que se vai consagrando dia a dia. Não tenho dúvidas que neste percurso houve mentores e provavelmente sem descurar outras personalidades marcantes, mas, João dos Santos é na 2ª metade do séc. XX o grande Mentor, a grande referência ética, técnica e científica quer da Saúde Mental Infantil como da Educação da Infância, absolutamente incontornável em tudo aquilo que se refere à defesa do superior interesse da infância, ou seja, a promoção do nosso futuro coletivo.

Colares, Setembro de 2013

Pedro Parrot Morato

 
 
Referências:
 
Morato, P.P. (2005). A Formação permanente da equipa Técnica da Casa da Praia. In O segredo do Homem é a própria infância – O Centro Doutor João dos Santos – Casa da Praia: 30 anos depois. (pp. 121-134). Ed. Assírio & Alvim. Lisboa.
 
Morato, P.P. (2003). Mais ética, menos estética: Contributo para uma cultura da Inclusão. Revista de Educação Especial e Reabilitação, 10 (1), 7-11.
 
Branco, M. (2000). Vida, Pensamento e Obra de João dos Santos. Ed. Livros Horizonte. Lisboa.
 
 
 
* Citação de João dos Santos
 
 
 
 
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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

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    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

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