Só a Fantasia Concede Mestria

FOTO de Dr Jaime Milheiro MEDIUMJaime Milheiro *
Porto, 7 de Setembro de 2013 **
 

Para além de uma certa troca de capacidades técnicas, científicas ou académicas, hierarquicamente instituídas e formalmente trocadas entre os chamados professores e os chamados alunos, como será possível rentabilizar esse binómio e sem artifícios convertê-lo num patamar mais elevado: no patamar de mestres e discípulos?

I

Para o aluno, em qualquer tipo de ensino e em qualquer tipo de atmosfera social, mestres são aqueles que dignificam os encontros em que comprometem e por essa via alcançam, de forma permanente e notória, representações seguras na mente de quem através deles se eleva. São raros e são-no pelo que dizem e pelo que fazem, independentes das ciências e dos conhecimentos que porventura propaguem. São presenças de sabedoria que, ao longo exercício, despertam no aluno os desejos de identificação que este, pelo facto de se sentir em crescimento, sempre interiormente ambiciona. É nesse movimento de identidade que o binómio aluno-professor pode evoluir para o de discípulo-mestre.

Mirando a minha própria história, considero que professores tive centenas, mas mestres tive quatro, dos quais apenas um era professor no sentido académico da palavra. Foram quatro pessoas que me ensinaram a pensar, a fazer, a ser, sem nunca mo dizerem ou sequer com isso se preocuparem. Pessoas que silenciosamente em mim catalisaram estas duas profundas mas elementares proposições:

  • Para além do conhecimento material das coisas existe uma irreprimível necessidade de fantasia em todo o ser humano, mesmo que aparentemente ele apenas busque ciência objectiva.
  • Toda a realidade externa dinamiza uma realidade interna e pessoal pré-existente. É na interacção dessas duas realidades que a misteriosidade característica do ser humano evolui para a curiosidade investigacional que o dinamiza, desenhando-lhes caminhos assentes em fantasias projectivas.

É nesse registo e no gosto de saborear a sua própria capacidade de pensar, uma vez resolvidas as necessidades básicas, que o ser humano organiza os seus conhecimentos, exigências e satisfações.

Por inteligência, intuição, sentido histórico e sensibilidade os mestres enquadram-se nesse cenário e os discípulos de forma pessoalizada com os seus mestres se enquadram, sempre na suposta mutualidade duma “coisa interna” repartida, próxima duma empatia frequentemente difícil de explicar. Só através da fantasia tal mutualidade poderá outorgar-se, pelo que no fundo poderemos dizer: só a fantasia concede mestria.

Prevenindo invejas e mediocridades, será também essa fantasia que em mestres e discípulos desmorona certos armamentos tóxicos que o poder de ensinar demasiadas vezes utiliza, propiciando criatividade e impedindo meras repetições. E revela ainda, em formato inescapável, que uns outros poderão unir-se e simultaneamente diferenciar-se no seu próprio caminho e na arte daquilo a que chamamos aprender a ensinar.

Mestres não são apenas professores. São pessoas de quem empaticamente gostamos, porque para além do momento presente e das circunstâncias de cada um no discípulo levantam gratificantes referências do passado e accionam-lhe horizontes de futuro, de forma soberanamente impregnada de consistência e densidade.

II

 Como se transmite tal mestria?

Quais as condições para que aconteça?

Do lado do discípulo, sendo o ensino, na sua essência, uma amnésia de retorno alternativo assente numa escolha racionalizada, o verdadeiro mestre transmite acima de tudo a natureza íntima das questões. Sem convicções nem modelos, fomenta componentes de abstracção, nada preocupado com os músculos da memória. Não transmite apenas conhecimentos nem academismos, mesmo que obviamente também o tenha de fazer: transmite leitura oficinal e capacidade de ler, através da fantasia que ele próprio revela e da que no discípulo propicia. Transmite mais arquitectura de pensamento do que coisa pensada, mais fermento transformador do que coisa transformada, enquanto sinaliza a existência de inesgotáveis canais de pesquisa e crescimento.

O crescimento da transmissão alarga-se na própria subjectividade do processo de a receber. Passa de objectivo às ideias que paulatinamente se vão interiorizando, através da janela que o mestre teve capacidade de entreabrir. Acontece para além do tempo e de quaisquer deliberações cognitivas, à maneira da criança que cresce num universo despreocupado da chave, porque o mestre não transmite saturações. Transmite continuidades que, mesmo sendo finitas e inconclusivas, continuam automaticamente no discípulo sem necessidade de aplauso, porque sustentadas na sua íntima fantasia de realizar. Facto que leva a supor que será muito mais decisivo o agente transmissor do que a coisa a transmitir e que no ensino a prioridade jamais será a razão. Decisiva será a relação entre quem transmite e quem recebe, levantando-se a questão da qualidade do texto e da qualidade do envolvimento.

Dito doutra forma, só quem dispõe de parcelas livres dentro de si pode transmitir liberdade de pensar. Alguém saturado nunca verdadeiramente o pode fazer. E só quem interroga é capaz de crescer e de fazer crescer, uma vez que rodas convenientemente apertadas previnem deslises mas também afastam algumas funcionalidades essenciais.

No meu testemunho, as pessoas que mais me ensinaram nunca se preocuparam em dizer-me o que faziam ou porque o faziam. Nem nunca insistiram no que eu deveria fazer. Mas eu sabia que eles sabiam e eles sabiam que eu sabia porque, pelo menos na minha fantasia, comigo partilhavam projectos, pensamentos e ambições. Sem discurso prévio, na condição benéfica que os silêncios comunicantes concedem, ensinavam-me a decifrar e não sentiam necessidade de se impor.

III

 Alongando um pouco, todos sabemos que nesta área das ciências humanas nunca será possível suster o conhecimento. Todo o conhecimento tem sinal de época, modificando-se a seguir. Mas sabemos também que ninguém marca lugar de mestre vociferando:

“reparem… estou aqui … ”

embora isso seja tentador e corrente.

Neste rio de fertilização constante, ninguém deixará sobrevivência em tal atitude. Só o respeito e a dignidade alicerçam raízes e recrutam discípulos, associados ao afecto e à partilha de quem canta porque na infância ouviu cantar. Notoriedades apenas externas transportam rápidos esquecimentos, se musicalidade não houver. Por isso, o “estou aqui” não resulta.

Além desse tipo de tentação, uma outra se divulga: a da “revelação” dita científica neste caso, ministrada por orgulhos e sapiências que privilegiadamente organizam livrescos estabelecidos. Em tal revelação, a história é apenas o acto de a revelar num processo que tudo seca em seu redor, nunca o processo de a discutir e prosseguir. De modo explícito, hoje, só as religiões tais revelações utilizam como método, embora disfarçadamente elas ainda se propaguem em capelas e academias de obediência tradicional. Não passam de conteúdos narcísicos e de objectos inertes, desarmantes das tarefas e das fantasias, incompatíveis com a mestria de que venho a falar.

Os meus mestres nunca me disseram, directa ou indirectamente: “ repara, estou aqui…” nem nunca me apregoaram “revelações”. Disseram-me que vale a pena sonhar e que até vale a pena ter razão antes do tempo, porque progredir é preciso e há sempre um degrau mais acima que importa pesquisar. Fantasias esgotadas transformam-se em projectos onde já não há nada para decifrar. Transformam-se em arquétipos de morte.

IV

 Noutro aspecto ainda, aparentemente contraditório, ninguém é homem senão depois da morte do pai: era Freud quem dizia.

Em termos simbólicos, ele descreveu a morte do pai em “Totem e Tabu”, morte cometida pelos filhos nos tempos da horda primitiva, desejosos de lhe ocupar o lugar. O pai detinha um poder absoluto sobre a mãe, sobre os filhos, sobre o sexo, sobre a agressividade, em prepotência esmagadora e inacessibilidade idealizada. Mas, estranhamente, após o assassinato e após a refeição totémica que se seguiu, o canibalismo supostamente apropriador de todas essas suas capacidades, não as transcreveu para os filhos em exacta reprodução. Morto e devorado, o pai surge ainda mais transcendente: passa duma realidade finita a uma presença eterna e a uma temida fantasia.

Através da morte, o pai deixara de morrer. Abstracto mas indestrutível no interior dos que haviam perpetrado o seu desaparecimento, tornou-se pensamento e memória simultaneamente venerada e odiada até ao fim de cada um. Por isso, compulsivamente, os filhos o foram repetindo, no seu símbolo e no seu processo, à maneira de um misterioso destino.

Seria esse o destino do ser humano, teriam de fazer como ele. Mas lentamente também foram crescendo e começaram a sentir necessidade de pensar, adquirindo fantasia e adquirindo capacidade de mestria. E assim começou a cultura, assim começou a regra, assim começou a escola. Assim começou também a culpabilidade, a negação, o pecado original, e se desencadearam lutas, disputas, condutas, porque daquela morte não resultara esquecimento nem alguém que na aceitação de todos suceder-lhe pudesse. Resultara crime, sentença, juízo, repetidos na misteriosidade básica que todo o ser humano concebe a partir daí e donde sempre ressaltam passados a redimir, futuros a construir, pessoalidades a desenvolver, ensinos a transmitir.

Quero com isto acentuar que, a partir da morte do pai, os seres humanos se obrigaram a reflectir. Civilizaram-se e prosseguiram, em trajectos onde o pai feito mestre sempre se levanta na insatisfação do sucedido. Pais e mestrias acabam por transformar-se em ideias poderosamente investidas e em fantasias plenas de retorno e de futuro, mesmo que porventura também proporcionem ambivalências, angústias, fantasmas e contradições.

Ser discípulo é pensar-se nesse movimento de quem se despediu: será reconhecer e ser reconhecido, numa linguagem que mesmo despojada de recompensa ressuscita o melhor que temos, somos e queremos ser.

É por isso que, prosseguir as lições do mestre será perceber a História e a justeza do lugar donde provimos: será perceber a justeza da história pessoal, da história institucional, da história das ideias, da história propriamente dita, na representação e no alongamento que se deseja e até se idealiza. Será saber que só falamos porque através dele crescemos, será saber que só através dele multiplicamos palavras e nos fizemos pessoas.

V

O inconsciente não conhece o tempo nem a morte. Por dentro, a morte não se reconhece: é-nos imposta. Só a racionalidade a torna visível e sem retorno, conferindo-lhe conceito e complexidade.

A criança não sabe da morte porque não sabe que vai morrer, embora o venha a saber mesmo que ninguém lho ensine. Toma nota das ansiedades, das perdas, dos sentimentos, no percurso por elas se alimentando e condicionando, mesmo sendo a morte um corpo estranho, uma bactéria induzida, tanto mais tóxica quanto mais inexoravelmente a compromete.

Mas a morte dos mestres nunca aconteceu. O nosso desígnio será sobreviver-lhes sobrevivendo-os, sabendo que só neles identificados teremos capacidade de fantasiar sobre conhecimentos técnicos ou científicos. Por isso eles foram os nossos mestres. Os outros nunca o serão: serão professores ou directores com quem nos cruzamos na profissão ou na vida, serão eventualmente competentes, serão eventualmente sinalizadores dos assassinatos e das hordas primitivas por onde circulamos, mas não nos despertam subjectividades objectiváveis.

Os verdadeiros mestres despertam-nos futuros e objectivos. Através deles criamos a nossa própria fantasia e tornamo-nos mensageiros. Deles nunca temos inveja: apenas gratidão. Também por isso a sua morte nos emociona, na certeza que nunca nos abandonam, porque nós também nunca os abandonaremos. Seria mesmo impossível fazê-lo.

PORTO, 7/9/2013

Jaime Milheiro

 
 
 
*     Dr. Jaime Milheiro, psiquiatra e psicanalista
       Ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise
     
**   Transcrição da conferência proferida pelo Dr. Jaime Milheiro no congresso “João dos Santos no século XXI”, 7 de Setembro de 2013
 
 
 
 
 
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    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

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