
Talvez pelas árvores, de grande porte e muita sombra, mostrando nos troncos, rugosos e longos, o tempo que tinham precisado para crescerem; talvez pelos pardais, pelos pombos e pelos cães, em voos, aterragens e correrias, metidos nas vidas deles e pouco interessados nas pessoas, esgravatando e encontrando comida, largando alegremente os seu dejectos ou, simplesmente, fazendo alarde do seu prazer em estarem vivos e activos; talvez pelas crianças à solta, apesar dos adultos que as acompanhavam e iam tomando conta delas, as crianças procurando serem como os pássaros ou como os cães, os adultos andando devagar ou sentados, deixando-se submeter, de bom grado, à sombra forte e ao sol ameno; talvez pelo sentimento claro de se estar num espaço livre muito especial, que transmite uma ideia forte de amplidão e de liberdade, quer para cima, para o céu e para as nuvens, quer para os lados, discretamente cercados de casas baixas de cores suaves e complementares, com a belíssima Mãe-de-Água, ao fundo, e com a pequena capela, muito harmoniosa, bem ao meio, encaixada no Aqueduto das Águas-Livres.
José Gomes Ferreira tem um pequeno poema, intitulado “Todos os dias passo pelas Amoreiras”, que transmite bem este clima:
“Há lá renda que se assemelhe A este tecido de árvores no ar… (Hei-de pedir à Maria Keil Para as pintar.) Árvores do Jardim do Aqueduto Sem flor nem fruto, Sem nada de seu… Só este azul de pássaros a cantar Que vai da terra ao céu.”João dos Santos gostava muito do Jardim talvez, ainda, pelo prazer de poder caminhar pelas suas veredas, acompanhado por amigos e amigas escolhidos, em diálogos tranquilos; talvez, ainda, pela proximidade do seu Centro de Saúde Mental Infantil, na rua João Penha, a dois passos, Centro e pessoas que lá trabalhavam também subtilmente impregnadas pela atmosfera do Jardim das Amoreiras; talvez, ainda, pela existência da “Tasca do papagaio ou tasca do Snr. André”, com a sua muito boa comida portuguesa tradicional, pedida para a cozinha, pela voz galega e estentorosa do seu dono, comentada pelo palrar dissonante do papagaio; talvez pela proximidade do Ginásio Clube Português, onde João dos Santos gostava de ir todas as manhãs, bem cedo, para sentir e manter o bom funcionamento do seu corpo, peça essencial do seu prazer de existir; talvez, ainda, porque o Jardim permitia recolhimento, acolhia bem as pessoas sozinhas, que queriam estar em silêncio.
Um Jardim com semelhanças com o das Amoreiras é o do Príncipe Real, muito belo, também, embora maior e mais desabrigado, sem a cercadura harmoniosa e próxima de casas que o das Amoreiras tem. Aí, outro amigo de Jardins, simultaneamente amigo do João dos Santos, Agostinho da Silva, mantinha uma ligação diária com o bulício calmo do Príncipe Real, através da actividade de religação com a Natureza de dar de comer aos pombos.
João dos Santos era mais um observador divertido com o que se passava no Jardim das Amoreiras, que lhe permitia, também a ele, sentir-se religado à Natureza (Mãe-Natureza? Pai-Natureza?), do que um interventor directo nas actividades do Jardim, que, de algum modo, sabia bem tomar conta de si próprio.
A ligação funda de João dos Santos à Natureza exprimia-se, também, no modo como vivia a sua quintinha de Sintra, cheia de árvores e de arbustos e de flores e de frutos, com mais espaço para a Natureza-Vegetal, do que para as pessoas, sempre um pouco intrusas toleradas, no meio de tanto verde.
Também na sua ligação ao mar, bem evidente no prazer que tinha em estar na sua casa de Sesimbra, se mostrava este elo bem forte que o ligava à Terra, ao Mar e ao Ar.
Creio que o João dos Santos se sentia mais à vontade na Terra e no Ar, sobretudo se mergulhado na luz do Sol, do que com o Mar, com quem mantinha uma relação de grande admiração, mas, também, de algum temor e respeito.
A energia vital colhida na Natureza, era, depois, transposta para a sua ligação com as pessoas, forte e, a um tempo, tolerante mas exigente, isto tanto com os colaboradores como com os amigos, como ainda, com os seus familiares.
Com o seu pai e com a sua mãe tinha tido uma relação que ele considerava de grande privilégio, e que, seguramente, também muito contribuíra para esta sua energia confiante, nele próprio e nos outros.
João dos Santos tinha grande orgulho nos seus filhos, Paula e José, Luís e João, mas, de novo um orgulho acompanhado de exigência, nem sempre bem entendida por eles.
Procurei traçar, em esboço rápido, o retrato de um homem bom, obviamente com contradições, mas com uma tal riqueza pessoal, que partilhava com as pessoas de quem gostava, que, dezoito anos sobre a sua morte, não esmoreceu a sua lembrança em todos nós, motivo principal para aqui estarmos hoje, nesta fixação em bronze da sua imagem.
Encontrei um poema muito curioso do próprio João dos Santos, que ele intitulou “O escaravelho das roseiras”:
“Era criança pequena quando me mostraram que havia pessoas más e pessoas boas e eu senti que se deviam matar todas as pessoas más. Era menino crescido quando me disseram que havia homens bons e homens maus e eu achei que se deviam matar todos os homens maus. Era já grande quando me explicaram que havia os pervertidos e os outros e eu concordei que se matassem todos os pervertidos. Era já homem quando me ensinaram que se deviam matar todos os descrentes, mas… não cheguei a perceber de que descrentes se tratava. Ouvi dizer mal dos brancos e dos pretos, dos vermelhos e dos amarelos, dos sábios e dos ignorantes, dos inteligentes e dos estúpidos. Por pouco não matei toda a gente, para ficar só com: os bons, os sábios e os inteligentes! Cansado de procurar a verdade, acabei por matar em mim o desejo de matar e o medo de ser morto. Espero que os homens se não matem uns aos outros só por eu ter deixado de estar alerta e de vigia aos maus, aos estúpidos, aos mentecaptos e aos pervertidos. Porque, entretanto, nesta Primavera florida, vou passando semanas inteiras a imaginar com prazer, como hei-de matar ao domingo, os piolhos e os escaravelhos das minhas roseiras.”João dos Santos, no seu busto, não podia estar em melhor sítio do que aqui, no Jardim das Amoreiras, a olhar, com muita tolerância para todos nós, que continuamos cansados de procurar a verdade, em vez de nos limitarmos a preocuparmo-nos simplesmente em matar os piolhos e os escaravelhos das nossas ideias feitas, para que as roseiras, que em nós aguardam a sua vez, possam desabrochar por elas próprias, que é tudo o que elas pedem…
* Algumas das palavras proferidas pelo Dr. Emílio Eduardo Guerra Salgueiro na data da inauguração do busto de João dos Santos no Jardim das Amoreiras, Fevereiro de 2008 em Lisboa **Psiquiatra e psicanalista © 2013 joaodossantos.net. Todos os Direitos Reservados / All Rights Reserved.