
No que respeita ao nível universitário, uma das consequências imediatas da mudança de regime ocorrida em Portugal nos meados dos anos setenta do século passado foi a criação do Curso de Psicologia na Universidade de Lisboa. Esta iniciativa, que em 1975 foi baptizada de “Ano Experimental” ou “Curso Experimental”, contou com a colaboração de prestigiados elementos das Faculdades de Letras, Medicina e Ciências que vieram a organizar-se em “Comissão Instaladora do Curso Superior de Psicologia”. O efeito “bola de neve” que então se gerou acabou por arrastar um grupo de notáveis personalidades que se relacionavam com a psicologia através da sua prática pedagógica, ou de investigação, ou clínica. Uma dessas personalidades foi o Dr. João dos Santos, na altura Director do Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa e conhecido nos meios clínicos como sendo o primeiro psicanalista de crianças em Portugal.
A colaboração do Dr. João dos Santos no Curso Superior de Psicologia prendia-se, sobretudo, com a regência das cadeiras de “Psicopatologia Dinâmica da Criança e do Adolescente” e de “Psicopatologia Dinâmica do Adulto”. Como, nesta pessoa, tudo era inovação, o resultado é que, nestas cadeiras (e em oposição a todas as tradições universitárias), o Mestre é que dava as aulas práticas e as Assistentes é que davam as aulas teóricas. Estas aulas práticas decorriam em instituições de saúde, como o Hospital de Santa Maria, ou em instituições educativas, como o Centro Helen Keller. De modo geral, estas aulas começavam com um debate entre o Mestre e os alunos que era interrompido quando chegava a pessoa ou a família que ia ser entrevistada. Terminada a entrevista, retomava-se o debate. Do ponto de vista programático, estes debates deveriam situar-se em torno das entrevistas que estruturavam as aulas e que lhes davam sentido. Na verdade, os debates acabavam por evoluir para tudo e mais alguma coisa, constituindo uma oportunidade de esclarecer os conceitos que deveriam ser elucidados em unidades curriculares mais formais e que, justamente por serem mais formais, não conseguiam ir tão longe nem elucidar de forma tão clara quanto necessário. Recordo que, no meu tempo de estudante, havia uma colega baixinha e muito sossegadinha que, valendo-se dos seus dotes de discrição, colocava as questões que se encontravam em suspenso no espírito dos discípulos de João dos Santos. Graças às perguntas dessa colega e às respostas do Mestre, ainda hoje me consigo socorrer de definições ultra simples para responder a algumas perguntas ultra complicadas que inevitavelmente surgem na vida profissional de todos os professores.
Numa dessas aulas, a tal colega baixinha e discreta perguntou: “O que é o carácter? Fala-se em Psicologia do Carácter, Psicanálise do Carácter, Psicoterapia do Carácter e nós não sabemos o que é o carácter!” Ao que o Professor João dos Santos respondeu com toda a simplicidade: “O carácter é aquela parte de nós, que existe dentro de nós e que nós não queremos ver. Quer dizer, é a pior parte!” Era por estas e por outras coma esta que aquele professor era sentido por todos nos como sendo o Professor da Simplicidade. Nas suas interpretações, ou nas suas respostas, não havia palavras incomuns, conceitos raros ou ideias estranhas; o mais obscuro da natureza humana era explicável através de ideias simples e de exemplos comuns. Por exemplo, a peça de teatro “Pygmalion” de George Bernard Shaw, mais tarde adaptada ao cinema com a designação “My Fair Lady”, era a melhor forma de nos explicar os conceitos de couraça caracterológica e de couraça muscular inventados pelo psicanalista alemão Wilhelm Reich.
Outro dos aspectos que prenderam a atenção dos estudantes dos primeiros anos do Curso Superior de Psicologia foi a faceta da eficiência. A este propósito, vou recordar um caso que veio a público, através da comunicação social, e que, por isso mesmo, prendeu a atenção não só dos alunos de João dos Santos, mas também da sociedade portuguesa em geral. Como, nas várias décadas de vigência do Estado Novo, a deficiência mental não tinha constituído uma prioridade nem dos serviços de saúde nem dos serviços de educação, quando se operou a transição de regime político em Portugal ainda não havia uma rede nacional de instituições relacionadas nem com deficiência mental nem com a educação especial. Na verdade, teve de ser a sociedade civil a superar esta lacuna através de instituições coma a Crinabel, a Liga Portuguesa de Deficientes Motores, a Associação Portuguesa de Pais e Amigos das Crianças Diminuídas Mentais, ou as CERCIS. Devido à inexistência desta rede, as crianças deficientes mentais eram muitas vezes conservadas em casa de forma a protegê-las da sociedade e vice-versa. Nos casos mais problemáticos, esta restrição familiar colocava a criança deficiente em locais como o galinheiro do quintal. E é, mais ou menos na época em que nos preparávamos para ser alunos do Mestre (estamos nos fins dos anos setenta do século XX), quando surge nos jornais a notícia de que uma médica de férias na província portuguesa descobre uma destas crianças. Essa médica resolveu agarrar o assunto nas suas mãos, trazendo consigo esta criança para que, em Lisboa, as autoridades ofereçam uma solução para o caso. Nessa altura, os jornais fizeram eco dos esforços infrutíferos da médica que transportava a criança de hospital em hospital e não encontrava instituição alguma que soubesse dar uma resposta. Um dia, os jornais explicaram que finalmente tinha sido encontrada uma solução e que essa solução passara pelo interesse pessoal e pelos contactos de um médico que se interessava por estes casos. O tal médico dava pelo nome de João dos Santos e, nesse momento, era Director do Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa.
Foi na sequência de este caso que os estudantes da minha geração aprenderam duas coisas. Em primeiro lugar, Portugal era um país onde os deficientes mentais que não nascessem numa família razoavelmente organizada poderiam ser sujeitos às soluções menos adequadas. E, em segundo lugar, os estudantes da minha geração aprenderam que o Mestre João dos Santos não era só o Professor da Simplicidade, também era o Professor da Eficácia.
*Professor Doutor João Manuel Rosado de Miranda Justo, Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa
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