OUVIR

 
João Sousa Monteiro 1Dr João Sousa Monteiro
Psicanalista
Lisboa, 29 de Agosto, de 2016
 
Dedico esta curta história a João dos Santos, o meu
primeiro  grande Mestre na difícil arte de ouvir, e na
descoberta da interminável preciosidade do silêncio.

Um dia, num intervalo das gravações de um dos programas de Rádio que tive o privilégio de fazer com João dos Santos, dei um pequeno passeio pelas ruas contíguas aos estúdios.
Estava uma tarde de Primavera tranquila e cheia da luz doirada e doce de Lisboa.
Subia uma pequena rua onde as árvores confirmavam a doçura daquela tarde.
Naquele momento, ninguém passava na rua.
Assim, sossegadamente, gozava uns minutos de pausa no trabalho de montagem de mais um programa que seria transmitido naquela noite.
Foi nessa altura que um homem, vindo do lado de cima, virava agora a esquina, e começava a descer aquela mesma rua, e pelo mesmo passeio em que eu a subia.
Assumi, tacitamente, que aquele homem e eu iríamos passar um pelo outro, naturalmente, e cada um de nós seguiria o seu caminho, como acontece tantas vezes, em cada hora que passa, numa cidade onde há ruas e pessoas que as percorrem e se cruzam.
Não foi, porém, isto o que naquele momento daquela tarde tranquila aconteceu.
Aquele homem, quando se achou suficientemente próximo de mim, parou subitamente. Parou – e o peso da sua presença, e a forma particularmente intensa com que me olhou, obrigaram-me a mim a parar também.
Sem se deter um instante em formalidades de natureza social, aquele homem dirigiu-se-me. Dirigiu-se-me – e invadiu-me com uma tal explosão de palavras que lhe jorravam da boca como uma conduta de água que tivesse, de repente, rebentado. E invadiu-me com o peso da ansiedade que cada uma dessas palavras transportava para dentro de mim.
Não falava, propriamente, comigo; não falava, sequer¸ propriamente para mim: as palavras, a música da voz, a intensidade do olhar, as   expressões fisionómicas, e a linguagem corporal daquele homem, naquele inesperado momento daquela tarde tranquila de Primavera, eram eficazes instrumentos através dos quais este homem me invadia, violentamente, com o que o torturava.

Tinha acabado de sair dos serviços administrativos do hospital militar que naquela altura ficava a uns metros dali.
Tinha estado na guerra, no Ultramar. Combatera em Angola durante anos. Tinha sido emocionalmente atingido pela infinita brutalidade da guerra, e pela infinita estupidez dos homens que as promovem.
Agora, a Pátria que ele servira, ignorava-o. Não o ouvia. O antigo combatente da guerra em defesa da Pátria desesperava do combate que a Pátria, que tinha deixado de precisar dele, movia agora contra ele. Era agora um combatente impotente na guerra contra uma Pátria impotente e ingrata.

Naquela tarde doce de Primavera, ouvi distintamente, nas palavras de um homem que nunca tinha visto antes, e nunca voltaria a ver, o que ele naquele momento não conseguia conter dentro de si próprio: ouvi a indignação que o consumia; a violência do sentimento de injustiça que o invadia; ouvi-lhe o terrível ruído da revolta, e aquele que a raiva da impotência para se defender da brutalidade com que a Pátria agora o ignorava.

Ouvi-o.  Ouvi-o talvez durante uns quinze minutos; talvez vinte.
Não lhe disse uma única palavra. Ouvi-o.
Ouvi-o em pé, imóvel, naquele mesmo passeio em que nos cruzámos por mero acaso.
Subitamente, este homem revoltado, à beira do descontrolo, parou de falar.
Parou – e olhou-me ainda mais intensamente, mas desta vez com uma expressão diferente nos olhos; olhou-me agora com perplexidade, numa expressão inquisitiva, talvez até mesmo doce, no meio de todas aquelas emoções desordenadas. Fixou-me, e eu a ele. Franziu intensamente as sobrancelhas, ao mesmo tempo que dava um passo atrás, afastando-se ligeiramente de mim. Recuou, talvez, um passo, um curto passo, como se me quizesse ver melhor, como se quizesse, talvez, perceber qualquer coisa que o surpreendia mas que no entanto parecia estar naquele momento a passar-se entre nós. Olhou-me longamente.
Num estranho e intenso silêncio, olhava-me ainda. Senti o impacto da sua perplexidade, mas não lhe lia o sentido.
Ainda em silêncio, levantou o braço direito, e apontou levemente para mim, como que à distância, ao longe.
E naquela posição, estática, particularmente concentrada, como se estivesse a representar uma estranha peça de teatro, disse-me, embora talvez mais como se estivesse a dizer-se a si próprio: ‘Mas… mas… o senhor sabe ouvir!…” E no instante em que acabou de dizer essa curta frase: ‘o senhor sabe ouvir…’, voltou-se de novo para a rua, agora de costas para mim, e sem mais uma palavra, retomou o seu caminho no sentido em que, uns minutos antes, descia aquela mesma rua tranquila.
Não voltei a ver aquele homem.
Nunca soube mais nada dele.
Nunca saberei se levou com ele aquele diálogo intenso ao longo do qual apenas uma das pessoas falou.
Pela minha parte, no entanto, sei bem que levei aquela conversa comigo para a vida, e que ainda hoje ela me ensina a seguir, mais atentamente, a forma como as pessoas falam umas com as outras, e como, falando, raramente falam umas com as outras.

Às vezes, aquela conversa traz-me de volta, ainda hoje, aquela tarde doce de Primavera, e aquela curta rua. Às vezes, aquela conversa traz-me, uma vez mais, uma pergunta que sei bem que jamais será respondida: com o que é que este mundo se pareceria se quizéssemos ouvirmo-nos uns aos outros, e se as palavras, e o silêncio entre elas, fossem vividos como uma preciosidade.
Fanny Ardant, a famosa actriz francesa, disse recentemente a um jornalista inglês: “Tears are like diamonds, you can’t waste them”.
Digo o mesmo das palavras: são como diamantes; não podem ser desperdiçadas.

Naquela tarde doirada de Primavera, esgotado o tempo do meu breve intervalo das gravações que tinha feito com João dos Santos, também eu voltei para trás, para os estúdios de onde tinha saído para o meu curto passeio, para concluir a montagem da emissão do programa de Rádio que nessa mesma noite, como em tantas outras, iria ter com as pessoas para conversar com elas com uma tranquilidade semelhante à daquela tarde.

Se pudesse, faria hoje, com João dos Santos, uma emissão de rádio acerca da conversa que tive com aquele homem naquela tarde tranquila.
Faríamos uma conversa acerca dessa coisa preciosa e rara que é conversar; faríamos uma conversa acerca dessa outra coisa, igualmente preciosa e igualmente rara, que é o silêncio entre duas pessoas, sem o qual essas coisas preciosas a que chamamos ‘palavras’ não seriam nunca autorizadas a nascer. Ouvi-lo-ia, de novo, falar do silêncio. E talvez essa emissão fosse um pouco diferente das outras; talvez fosse ainda mais feita de silêncios do que de palavras. E talvez assim, no silêncio, se ouvissem melhor as palavras que não são ditas do que as que muitas vezes o são.

Mas talvez tenha sido esse, afinal, o tema principal de todas as emissões de Rádio que tive o privilégio de fazer com João dos Santos.

João Sousa Monteiro
Lisboa, 29 de Agosto, de 2016

 
 
 
 
 
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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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