CONFIAR E APRENDER

  
Maria Emilia Brederode Santos MEDIUMDra. Maria Emília Brederode Santos
Membro do Conselho Nacional de Educação

Fevereiro de 2014
 

Recordo o Dr. João dos Santos acima de tudo como alguém em quem se podia confiar e com quem se estava sempre a aprender.

Em momentos de dúvida, perante solicitações pouco claras ou de origem desconhecida, pedia-se opinião ao Dr. João dos Santos e ele estava sempre disponível (como, no meio de tantos afazeres, não sei!) para apreciar o pedido e dar, generosamente, a sua opinião. Fazia-o de forma fundamentada, clarificando o que eram informações objectivas e o que era o seu próprio sentir. E, por isso, qualquer conversa com ele acabava por se tornar numa ocasião de aprendizagem assente na emoção e na reflexão.

As próprias sessões de apreciação de pacientes eram abertas e concebidas como sessões formativas para todos os intervenientes. Recordo-me de ter sido levada [1] a algumas dessas sessões e de nelas ter aprendido o que não se aprendia nas instituições académicas – como no seguinte diálogo:

– “Vou apresentar o caso de XXX. Julgo que sofrerá de uma grave depressão provocada por …”

– “Desculpe, não lhe pedimos ainda um diagnóstico. Pergunto-lhe: o que sentiu quando conversou com esse menino?”

– “Uma grande tristeza…”

– “Então é isso que temos que reconhecer. É daí que partimos.”

E a sessão fluía como uma conversa em que se analisavam tanto os sentimentos dos psicólogos como os das crianças, em que todos participavam e partilhavam saberes e experiências.

No seu “auto-retrato”, incluído na maravilhosa “Autobiografia” que Mª Eugénia Branco teve o condão de lhe organizar, explica e desenvolve esta postura: “… quando me senti mais maduro, mais velho, procurei esquecer tudo o que sabia de técnica e formação profissional para tratar as pessoas num plano mais humano.

Claro que não esqueci todo o saber teórico, mas procurei libertar-me dele. O que me impressiona, sempre me impressionou muito, é que o exercício de psicologia com crianças ou adultos, aqui e em outros países, faz-se de uma maneira que tem mais a ver com a avaliação das funções que com a própria pessoa. Usam-se testes para determinar a memória, a atenção, a inteligência. Não se está em contacto directo com a criança. Há sempre uma barreira feita de preconceitos científicos acerca do que é a afectividade, relacionamento.” [2]

Ora a emoção, a afectividade é, para João dos Santos, o motor do desenvolvimento, da aprendizagem, da vida intelectual: “… em Paris (1946 – 1950) aprendemos com o nosso mestre Henri Wallon a importância da emoção, em Les Origines du Caractère Chez l’Enfant. Este trabalho e o ensino de S. Lebovici permitiu-nos reconhecer a importância dos factores dinâmicos.” [3]

É um tema que aborda recorrentemente e a propósito de vários assuntos:

“Numa outra intervenção, a propósito do desenvolvimento afectivo, procurei demonstrar a impossibilidade de separar, no plano evolutivo e pedagógico, a vida afectiva e cognitiva, acabando por concluir que todos somos, de certa maneira, diminuídos mentais, porquanto em graus variáveis as pessoas não consciencializam, não aproveitam e não desenvolvem todas as suas faculdades psicológicas”. [4]

Sobre o trabalho das equipas também se pronuncia explicitamente:

“A minha convicção é de que as equipas só existem de facto, e só se tornam eficientes, se um objectivo pedagógico muito concreto for constantemente posto à discussão e elaborado por todos. Devo dizer que certas pessoas reagiram muito desfavoravelmente à proposta de discutirmos qual o núcleo de ideias dinamizadoras e o objectivo educativo das equipas, tomando-a por uma crítica às intenções e aos resultados obtidos. Não é a primeira vez que noto entre nós reacções deste tipo, ao apelo para uma reflexão sobre os meios e os fins de cada grupo de trabalho. Curiosa esta sensibilidade dos Portugueses ao apelo para a reflexão em conjunto!” [5]

Esta preocupação com a reflexão conjunta dos profissionais sobre o seu trabalho é de uma enorme actualidade. Inúmeros estudos internacionais definem hoje o professor, por exemplo, como “um profissional reflexivo” e a maioria dos formadores de professores pretendem, justamente, desenvolver nos futuros professores e também nos que já o são, portanto tanto na formação inicial como na formação contínua, competências de trabalho em equipa, de análise do trabalho feito e dos resultados obtidos, capacidades de reflexão conjunta, pois.

No fundo, é sempre a mesma ênfase no funcionamento integrado da reflexão e da emoção que os estudos mais recentes sobre o cérebro, designadamente do casal Damásio, têm vindo a confirmar.

A importância de João dos Santos na Psiquiatria moderna e em especial na Psiquiatria Infantil é bem conhecida e reconhecida. Mas também na educação João dos Santos teve um papel importante e não apenas por esta defesa do papel de reflexão conjunta das equipas de profissionais da criança. Entre outras coisas, ele foi, juntamente com Arquimedes da Silva Santos e Delfim Santos, o elaborador da teoria fundadora, em Portugal, da Educação pela Arte.

Segundo Domingos Morais [6], a conferência de João dos Santos, pronunciada em 1957, “Fundamentos psicológicos da Educação pela Arte”, integrada na série “Educação Estética e Ensino Escolar” [7] e que viria a ser editada dez anos mais tarde, “é justamente considerada como o acto fundador da Educação pela Arte em Portugal ao esclarecer os conceitos de arte infantil, expressões artísticas, educação e ensino artístico”.

Baseando-se sobretudo em Wallon, João dos Santos considera a emoção a base de todos os fenómenos de comunicação ou linguagem. Descreve a evolução psicológica da criança desde a fase vegetativa do recém-nascido em que a comunicação estabelecida pela “mãe”introduz um princípio organizador. Clarifica o papel do adulto educador: “O adulto antecipa o exercício da função simbólica, atribuindo o valor de símbolo a expressões e produções infantis que são apenas simulacro. Esta antecipação é constante, útil e necessária (…) pode ser inútil e nefasta quando o adulto, a par das imposições educativas, não permite os movimentos espontâneos e experiência livre. O símbolo ou linguagem socializada tem evidentemente de ser imposto à criança, mas se essa imposição não é apenas uma antecipação destinada a estimular na criança a actividade simbólica, para se tornar uma automatização de gestos e expressões, faz-se adestramento e não educação. A linguagem não se ensina, aprende-se pelo exercício e integração de todas as formas de comunicação, a começar pelas pré-verbais.” (pp. 29-30)

João dos Santos clarifica que, quando fala de “linguagem” não está obviamente a falar apenas de “expressão verbal” e sim de todas as “fórmulas que permitem a comunicação com os outros e que, portanto, implicam uma integração do indivíduo na sociedade”. Serão linguagem o movimento, o gesto, a expressão mímica como um pouco mais tarde o desenho, a pintura e a escultura, a fala e a escrita ou o som e a música. “Toda a comunicação implica basicamente emoção, sentimento e experiência vivida no contacto com os outros” (p. 32). Mas a linguagem não é só um instrumento de comunicação, é também “um meio de dissimulação de emoções profundas”. A linguagem não tem, por isso, “o carácter objectivo que os educadores às vezes lhe querem atribuir (…) O símbolo é uma forma de interpretar a realidade” e não a própria realidade. Por isso, João dos Santos defende que à criança deve ser reconhecida a liberdade de interpretar de forma diferente da do adulto e de “experimentar, observar e descrever de acordo com o seu próprio sentir”(p. 37). Aqui entraria a Educação pela Arte reconhecendo à criança os seus próprios pontos de vista e sendo “uma das melhores e mais eficientes formas de higiene mental infantil, aquela que permite uma mais perfeita integração das emoções no contexto geral de uma linguagem convencional.

A maior parte das matérias escolares baseia-se numa linguagem e conhecimento abstractos e é portanto frustrante na medida em que impede a expressão de sentimentos profundos, nem sempre verbalizáveis” (p. 37). Defende que a escola admita que “a aprendizagem não pode ser exclusivamente racional, porque a razão tem, geneticamente, um ponto de partida emocional”. (p. 45). Por isso a escola deve permitir a “livre experiência” como base sólida para as aquisições de conhecimento, uma espécie de iniciação “com carácter lúdico” a qualquer matéria “em qualquer grau de ensino”embora à medida que a criança se vai desenvolvendo e amadurecendo esta “livre experiência” possa ser menos necessária. Analisa e descreve esta evolução através do aspecto da “educação pela arte” que melhor conhece (graças à sua estreita e longa colaboração com Cecília Menano): o desenho e pintura infantis.

Numa entrevista que lhe fiz no programa televisivo “Falar Educação” com a professora Cecília Menano sobre a Educação pela Arte, [8] ele defende a prática do desenho, da pintura e outras actividades plásticas pela criança para “descarregar afecto, emoção” que nem sempre se pode fazer sobre o meio físico e social e por isso é saudável e eficaz que a criança o possa fazer sobre uma “produção” sua de “tipo artístico”. Mais: “a expressão gráfico-pictural tem uma grande importância na aquisição dos símbolos”, na aprendizagem do gesto, do traço.

A importância da livre expressão e da prática do desenho, da pintura e de outras actividades plásticas por parte da criança pré-escolar é hoje consensual. Mas João dos Santos defendia que continuava a ter importância na criança mais crescida e no adolescente “que têm uma grande necessidade de expandir aquilo que têm dentro de si”.

Defendeu e lançou as bases de uma “Pedagogia Terapêutica”, mais ligada às dificuldades de aprendizagem, conceito que reelaborou com base nas suas experiências psico-pedagógicas no Colégio Claparède, no Colégio Moderno, no Centro Helen Keller e integrando o grupo de fundadores do Movimento da Escola Moderna em Portugal. [9]

Define a sua “Pedagogia Terapêutica” como “uma maneira de actuar junto das crianças que se apresentam aos professores e pais com dificuldades escolares temporárias (…) não pretende ser uma ciência mas uma actuação prática” que procurará institucionalizar, criando um projecto alternativo de atendimento a crianças com problemas escolares, a Casa da Praia, hoje Centro de Estudos João dos Santos – Casa da Praia.

Eulália Barros, depois de historiar o percurso de João dos Santos e de analisar o seu conceito de “Pedagogia Terapêutica”, define-o assim: “… para João dos Santos, a PT é um modelo de intervenção que sintetiza a perspectiva clínica, a compreensão psicológica, a aplicação pedagógica e a educação familiar”, baseando-se sobretudo na Pedagogia Curativa de Debesse. [10]

A herança de João dos Santos é, assim, ao mesmo tempo, múltipla e diversa nas várias áreas de que se ocupou – motricidade infantil, pedopsiquiatria, educação, pedagogia terapêutica… – e una na sua centração na criança como ser integral bem como na importância reconhecida à emoção, à criatividade e à fantasia como suportes inseparáveis das aprendizagens. A celebração do seu centenário, organizada pelos seus filhos Paula Santos Lobo e Luis Grijó dos Santos, é um testemunho vibrante dessa riqueza.

Maria Emília Brederode Santos

Fevereiro de 2014

 

[1] Por quem já não recordo mas aqui deixo os meus agradecimentos à Graça Barahona, Isabel Empis, Mª João Pena e Mª José Gonçalves porque alguma delas foi.

[2] Maria Eugénia Carvalho e Branco, Vida, Pensamento e Obra de João dos Santos, Livros Horizonte, 2000, p. 65.

[3]Op. Cit., p. 60.

[4] Op. Cit. p. 162.

[5] Op. Cit. p. 162 e 163.

[6] Domingos Morais “As expressões artísticas e a educação artística através da (pela) arte em Portugal”, in Clara Castilho e Pedro Strecht João dos Santos, Memórias para o Futuro, Ed. Centro Doutor João dos Santos, Lisboa, 2013, p.157.

[7] João dos Santos, Nikias Skapinakis, L. Francisco Rebelo, Nuno Portas, João de Freitas Branco e Rui Grácio, Educação Estética e Ensino Escolar, Publ. Europa-América, Lisboa, 1966.

[8] “Educação pela Arte – A Escolinha de Arte de Cecília Menano”, in “Falar Educação”, programa televisivo coordenado por Maria Emília Brederode Santos, do Instituto de Tecnologia Educativa, transmitido por RTP em 1975/76. Entrevista conduzida por Maria Emília Brederode Santos a Cecília Menano e João dos Santos e transcrita por Mª João Craveiro Lopes.

[9] Ver o historial descrito por Eulália Barros in Andar na Escola com João dos Santos, Lisboa, Ed. Caminho, 1999.

[10] Idem, p. 104.


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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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