Com João dos Santos no fascismo, caminhos para a democracia e construção do futuro

Professora Manuela Cruz MEDIUMManuela Cruz
Professora de Ensino Especial
Agosto de 2013

É bom viver muitos anos e conseguir guardar dentro de nós “a vida que nos sopraram aqueles que tinham a sabedoria”. Se esse viver já está maculado por perdas insuperáveis é como que uma bênção “saborear o mel da vida mesmo quando a adversidade nos atinge”. Mensagens que João dos Santos nos deixou e se ligam a outras tão profundas que ajudam o nosso sentir e pensar: “{…} às vezes as pessoas partem. Isso não quer dizer que devemos ficar tristes. Partir é partir”, diz Ondjaki.

João dos Santos morreu há anos, vinte e seis precisamente, mas continua entre nós. Cada vez é mais oportuna e necessária a aplicação do seu pensamento na saúde, na educação em geral, na pedopsiquiatria em especial.

Este ano, comemorativo de um século sobre o seu nascimento, tem sido o reencontro constante, entrelaçado na memória do tempo, com pessoas, espaços, acontecimentos que determinaram caminhos para construir o meu saber, o meu fazer, o meu ser.

Nasci em Lisboa, em tempo pleno de fascismo, algo amedrontada na infância com os rumores da segunda guerra mundial, protegida por uma família de origem algarvia enraizada na cultura lisboeta.

Na janela da mansarda da casa do meu avô materno, em Santa Luzia, vi os navios que lentamente deixavam o cais com o uivo sonoro das sirenes anunciando a partida. Revivi essas memórias, primeiro, no livro de Rodrigues Miguéis – A Escola do Paraíso – depois, nos escritos de João dos Santos sobre a sua própria infância. Ele nomeia Miguéis como professor, personalidade de referência na sua adolescência estudantil. Pela mão do meu avô paterno percorri a pé as ruas da Graça a Santa Luzia; atravessei, aos sábados, a Feira da Ladra aquele mundo cenário de estórias, de coisas e de pessoas.

O Mosteiro de S. Vicente é marco familiar preciso e nítido: os meus pais consumaram nele o casamento civil. Vi sempre a sua foto de noivos na suave escadaria, fecho do enorme e pesado edifício. Vivíssima também, quase cinematográfica, a imagem do meu irmão, rapazito, a descer correndo os degraus de pedra para anunciar a sua aprovação no exame de admissão ao Liceu, o Gil Vicente, aquele em que João dos Santos estudou. Ainda hoje quando visito o lugar e aprecio a luz incomparável de Lisboa, naquela vista magnífica, evoco e compreendo as suas palavras: “a minha educação audiovisual recebi-a através das janelas do Mosteiro de S. Vicente”. Como se entende a importância e essência do urbanismo na descrição das suas vivências na cidade!

O Bairro das Colónias onde até há poucos anos existia a loja da alfaiataria do pai de João dos Santos, intacta na fachada, publicitada em folheto de marcante design déco, foi também área muito visitada por mim em criança, por via de familiares meus ali residentes. Essa zona e a circundante dos Anjos e Intendente foi privilegiada por alfaiates, costureiras, modistas de vestidos, chapéus e lingerie feminina que agregaram ao seu ofício o comércio de fanqueiro e retroseiro, necessário à aquisição dos aviamentos para a execução das obras. João dos Santos viveu, andou por ali, pais, tios e tias especialistas na costura de alfaiate. Fala-nos dos lugares, espaços vivos, povoados de pessoas e de afetos onde se inseriu o seu crescer e implicou parte do seu ser.

Frequentou as aulas de Educação Física do Lisboa Ginásio, instituição popular ainda hoje existente e com atividade significativa na sua especialidade. Naquele tempo, a família admirou-se com a decisão do pai de João dos Santos o inscrever na educação física. O meu pai também foi sócio desta sociedade recreativa e eu lembro-me do fascínio que sentia ao assistir lá aos saraus da época.

João dos Santos conheceu no Largo do Intendente o operário João Chaves, ceramista da Fábrica Viúva Lamego, cujo emblemático edifício devia ser hoje peça de visita, contemplação e até de estudo para estudantes da infância à juventude. Seria curioso saber quantas escolas da zona o visitam e descobrem! É que como diz João dos Santos “ ler não se circunscreve aos livros mas também aos espaços que nos rodeiam”. São os seus profundos ensinamentos pedagógicos tão esquecidos, tantas vezes substituídos por exercícios programados, artificialmente concebidos para só valorizar a aprendizagem no espaço restrito da mesa e da pequena folha de papel!

Aprendi com ele a observar uma criança. Dizia que ouvi-la a contar o seu caminho de casa à escola nos pode dar informação preciosa sobre a sua capacidade para aprender a ler.

“Urge que os professores aprendam a observar, avaliar e a compensar as crianças nas suas dificuldades”.

“Convém chamar leitura ao que cada um observa à sua volta; escrita ao que se regista espontaneamente sobre coisas diversas; contar, ao que se vive corporalmente como ordem e quantidade”.

São estes princípios que a nossa educação escolar, na atualidade tão sobrecarregada de manuais, fichas e exercícios corretivos, não defende nem segue. Nunca as pastas das crianças foram tão pesadas pela quantidade de livros que transportam.

Voltando à zona dos Anjos, em Lisboa, encontramos prédios de referência na vida de João dos Santos, lugares que assinalou como significativos no seu crescimento: a casa onde nasceu ”lugarzinho simpático” ladeada por antiquíssima capela próxima do jardim e da igreja com uma branca torre e um pórtico neoclássico na entrada.

Na Rua Maria, paredes meias com o Bairro Andrade, “o bairro rico” e o “bairro pobre da Travessa da Bica do Largo do Intendente” fica o prédio onde viveu menino, jovem e adulto até partir para Paris; fronteiro a este o outro, onde funcionava a sua escola, a da “Dona Marquinhas e Senhor Castro, seu marido, o das grandes manápulas, que nos cascava às vezes, eram liberais e livres pensadores”.

As descrições de João dos Santos não se referem a lugares idílicos de bem-estar mas sim a espaços e pessoas vivas enquadradas na dinâmica das relações naturais e afetuosas da época em que viveu.

É também esta zona especialmente rica em fachadas de azulejos com decorativos frisos arte nova que, vim a saber mais tarde pela artista Maria Keil, a inspiraram em algumas produções do metro, em especial na estação dos Anjos.

Foi na Casa da Praia muitos e muitos anos depois, após o 25 de Abril, que o encontro e a convivência entre ambos se estabeleceu enquadrada por amigos como Maria Violante Vieira, Matilde Rosa Araújo e Agostinho da Silva entre outros.

Eram personagens que animavam, ajudavam e apreciavam o projeto da Instituição. Nas datas especiais de FESTA apareciam e davam a crianças e adultos o prazer da convivência com sensibilidades e modos de ser diferentes do habitual. Na Casa da Praia a cultura de educar e de tratar nascia na proteção pelo afeto, na organização e cooperação no trabalho, na criatividade e na vivência estética. João dos Santos disse “o que é importante na educação, antes de mais, é o ambiente natural e esteticamente harmonioso em que ela se processa”. Maria Keil, a artista, como nenhuma outra, dos murais de azulejo, dos delicados desenhos de árvores, gatos e meninos afirma na sua linguagem poética: “reparei que o horizonte estava incrivelmente perto, dentro da linha dos meus olhos”. Ele, o amigo, o mestre interroga-se: “o horizonte nem sempre está ao alcance da mão da criança ou do homem, às vezes está longe no tempo outras no espaço […]. Será esse um dos segredos da necessidade que o homem teve de fazer registos ou escritos que assinalassem o seu caminho e o seu modo de ver as coisas, ou simbolização?”. Ficamos a pensar…

Mas como conheci eu João dos Santos? Como aconteceu o nosso encontro que me deu a preciosa oportunidade de trabalhar e aprender com ele durante tantos anos?

A vida tem caminhos às vezes sinuosos que nos realizam e enriquecem. Iniciei a minha vida profissional como professora de ensino primário nos primeiros anos da década de sessenta do século passado.

Tinha feito o sétimo ano do liceu e a crise económica que a minha família atravessou na altura não me permitiu seguir estudos superiores. Entendia-me bem com crianças, gostava de ensinar o que determinou a minha escolha. Nessa época da minha juventude, por via do convívio com alguns amigos do meu irmão, na faculdade, conheci vários jovens estudantes e outros já profissionais, na sua maioria democratas e anti-salazaristas que não só punham em causa a cultura do Estado Novo como também ousavam conhecimentos e práticas inovadoras nas áreas em que trabalhavam. Frequentavam lugares de tertúlia ao Saldanha: a casa de gelados Monte Branco, o Monte Carlo e Monumental, restaurantes e simultaneamente cafés, locais de encontro e conversa de muitos intelectuais desse tempo.

Jovem e tímida que eu era escutava sobretudo as conversas em grupo, observava curiosa as pessoas, algumas figuras de referência; ousava falar com os mais novos, estudantes ainda, com quem estabelecia relações próximas ao abrigo de uma certa proteção pelo meu ainda débil saber e experiência.

Andava por lá o Nikias Skapinakis, artista plástico de que já se falava e que se sabia defender conceitos e práticas novas para o desenho e pintura na educação estética da criança. Acresce dizer, porque hoje a maioria desconhece que a realidade da escola portuguesa no Estado Novo era, no ensino primário, a prática do desenho à vista: a bilha, o copo, o vaso (sem flores) representados em treinos sucessivos das crianças para o exame da 4ª classe. Havia regras ensinadas para “fotografar”o objeto que anulava qualquer ousadia de, livremente, traçar uma linha. O desenho na 1ª e 2ª classes era, normalmente, feito à régua: uma casinha ladeada de árvores e flores inexpressivas com porta e janela muito direitinhas para as meninas ou então um barco à vela, a navegar num mar, sem ondas nem vida, para os rapazes.

Pedagogos porém existiam e experiências em escolas que já repudiavam essa prática formal e faziam renascer a qualidade do ensino inovador, experimental e criativo dos anos da república seguindo tendências modernas de educação.

Foi o psiquiatra e psicanalista Mário Casimiro, que bem conheci, que me encaminhou para o encontro com Alice Gomes na altura professora no Liceu Francês e pedagoga já então membro destacado da Associação Portuguesa de Educação pela Arte que se filiava na outra similar de nível internacional.

Acabado o curso convidaram-me a ficar nas escolas primárias anexas onde os alunos mestres, futuros professores, realizavam a sua aprendizagem prática.

Entregaram-me uma primeira classe de ensino regular com cerca de cinquenta alunos, número que foi diminuindo ao longo do ano letivo, por transferências ou desistências. Os meninos tinham idades compreendidas entre os sete e os doze anos. Nestes tempos a pobreza era imensa. Havia crianças com fome, descalças, sem agasalhos suficientes. O médico escolar em Lisboa, capital, interpelou-me numa das suas visitas:

– Como permite na aula meninos sem sapatos? Não sabe que é proibido por lei?

– Se me arranjar calçado eu cumpro a lei pois não gosto de ver meninos de pés nus.

O material pedagógico era inexistente. A classe despida de tudo. Consegui pincéis e tinta cenográfica. A caixa escolar acedeu ao meu pedido por interferência do diretor e os meninos, só rapazes, pintavam no chão em folhas de papel de jornal de grande formato. Modelavam o barro que apanhávamos nas lamas dos campos em redor e que, na aula, limpávamos das pedrinhas em grandes alguidares, sessões de trabalho livre que gratificavam as crianças e que eu desconhecia, na altura, ser uma atividade terapêutica.

Os meus alunos desenhavam livremente, lindos trabalhos faziam mas eu apoquentava-me com os resultados da iniciação da leitura pelo método global, experiência que iniciara com autorização superior. Eu via resultados mas não com a rapidez programada da leitura do livro único da primeira classe que para a maioria dos alunos estava dominada por altura do Carnaval.

Devo dizer porém que o diretor me protegia nesta “aventura” em que eu me metera. Motivada pela obra de António Sérgio e Irene Lisboa fazia com entusiasmo o meu trabalho atendendo o mais possível às caraterísticas dos alunos e aos múltiplos problemas que muitos deles apresentavam. Esta experiência motivou-me para me interessar pelas dificuldades das crianças e no ano seguinte fui tirar a especialização no Instituto Aurélia da Costa Ferreira dirigido pelo Professor Doutor Vítor Fontes. Aí continuei insatisfeita com a prática pedagógica usada mas ganhei porém muito com a experiência que me aproximou das perturbações e doenças mentais infantis como então eram designadas. Foi o encontro com a médico-pedagogia.

Continuava à procura de resposta às minhas inquietações de, como promover na escola uma organização que motivasse o interesse ativo na aprendizagem, o trabalho de grupo e de cooperação.

Através de Alice Gomes, no grupo da Associação Portuguesa de Educação pela Arte, conheci Lucinda Atalaya, Cecília Menano, Calvet Magalhães e sobretudo Maria Amália Borges. Ela levou-me à sua escolinha experimental das técnicas Freinet no sótão da sua casa na Rua Maria. A ela e à Rosalina Gomes de Almeida, sua assistente, devo a esclarecida formação básica na pedagogia Freinet. Foi a Maria Amália Borges que me convidou para ir trabalhar no Centro Infantil Helen Keller onde conheci pessoalmente João dos Santos.

“O Centro Helen Keller chamava-se primeiro Centro de Recuperação Visual e começou a funcionar em 1955 com a primeira classe de amblíopes, que a partir da Liga da Profilaxia da Cegueira fundámos, e inspirados pelas ideias que vinte anos antes, Mário Moutinho tinha lançado”– escreve João dos Santos. Esta escola que recebeu um enorme subsídio da Fundação Calouste Gulbenkian para o projeto apresentado por Maria Amália Borges, Henrique Moutinho e João dos Santos instalou-se nos andares de um prédio no Jardim Constantino em Lisboa. Destinou-se ao ensino de cegos e amblíopes integrando as crianças de visão normal que vieram da escolinha da Maria Amália. Foi nos anos sessenta uma experiência pioneira no mundo, no ensino conjunto de crianças invisuais e normovisuais. Simultaneamente e por intervenção dos três responsáveis foi criada pelo Ministério de Educação a primeira escola pública mista de amblíopes, que funcionava nas instalações do Centro Helen Keller. Eu fui a professora titular desse lugar.

João dos Santos realizava todas as semanas, à hora do almoço, com os educadores, professores e outros técnicos um seminário psicopedagógico onde era apresentado o caso de uma criança cuja aprendizagem, comportamento ou relacionamento pusesse problemas ao professor ou educador por ele responsável.

Nessas sessões a criança era descrita por cada um dos técnicos que dela se ocupava, incidindo essa apresentação sobretudo no que cada um sentia e vivenciava na problemática relacional da criança. Apreciavam-se os trabalhos escolares, desenhos, pinturas e outros considerados relevantes para compreender e ajudar o aluno.

No ambiente de comunicação clara e acessível o Dr. João dos Santos falava sobre o significado do sintoma na criança e na implicação dele na relação estabelecida. Encontrava-se um caminho que se pretendia terapêutico para a criança e que favorecia a segurança do técnico que compreendia e participava no processo pedagógico e terapêutico que se deveria desenvolver.

Para mim eram momentos únicos de aprendizagem onde aprendi a conhecer a criança e descobrir-me a mim própria. Era um processo dual de comunicação. Do mestre a linguagem nova que emanava simplicidade e sabedoria.

Foi no Helen Keller que iniciei o trabalho com João dos Santos e que veio a proporcionar o meu ingresso no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa, serviço por ele criado e de que foi o primeiro diretor. Aí fui enquadrada numa equipa de saúde mental infantil, pluridisciplinar, formada por médicos psiquiatras da infância, psicólogos, terapeutas da fala, professor de educação física, reeducador da psicomotricidade, enfermeiros, educadores, assistentes sociais. Fui a primeira professora de ensino especial a ser admitida no centro.

A direção de João dos Santos era de uma grande e inovadora atitude democrática, de uma segura competência face às estruturas da saúde mental infantil então vigentes. No Centro havia uma orientação dinâmica no tratamento da perturbação psíquica da criança, enquadrada na família e na escola onde a ação dos diferentes técnicos da equipa se incluía e avaliava. Cada um de nós era, no trabalho, supervisionado por um orientador com formação analítica.

Pensar como foi possível nos anos sessenta do século passado esta estrutura acontecer e funcionar é avaliar do grande prestígio e saber de João dos Santos que numa visão ampla de progresso, com uma sólida e reconhecida formação científica, uma hábil e definida atitude profissional, conseguiu pôr de pé um serviço que se impunha pela sua reconhecida e elevada qualidade.

No Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa cada criança com o seu familiar tinha hora marcada de consulta, quando o normal nos serviços hospitalares e nas chamadas caixas de previdência, era as pessoas aguardarem horas para serem atendidas. No Centro a criança era observada, a família ouvida, o caso estudado com intervenção dos técnicos das várias especialidades, no caso consideradas necessárias. Nas reuniões as diferentes observações eram ponderadas e o encaminhamento feito conforme as conclusões definidas.

João dos Santos dava autonomia a cada técnico para orientar a sua prática mas às reuniões de equipa onde, em síntese, se apresentava o trabalho ninguém se podia furtar. Nestas reuniões que começavam às oito da manhã, no dispensário central, todos eram ouvidos e cada um tinha que expor a sua intervenção para ser discutida na equipa. Neste local compareciam todos os técnicos de todos os serviços do Centro.

Fui colocada na Clínica Infantil a funcionar no Hospital Júlio de Matos, sob a chefia da Drª Margarida Mendo, colaboradora de João dos Santos. A primeira prova de adaptação e formação foi-me exigida, como aos outros, por ele: seguir durante um tempo, dias, semanas, uma criança perturbada sem qualquer material de apoio técnico. Foi-me confiada uma menina com uma grave epilepsia em avançado estado de deterioração mental (os casos, na época, eram muito pesados). Lá tive que a entreter, conversar, brincar, ajudar, conduzir nos espaços, comunicar, observá-la e deixá-la observar-me, no fundo entendê-la.

Semanalmente, João dos Santos em reunião individual supervisionava o meu trabalho e depois quando me deram um grupo continuei com ele em supervisão.

Nunca perdi a minha identidade profissional, pois não era isso que João dos Santos defendia. Como professora intervinha mas diariamente o meu saber pedagógico era posto à prova com a complexidade dos casos que “na classe” estava a atender e a tratar.

João dos Santos sempre dava um apoio incondicional quando via que o nosso trabalho tinha qualidade o que era sua exigência. Com delicadeza e cuidado apontava os erros cometidos mas sobretudo explicava o significado das nossas intervenções na relação com a criança. Não ensinava como se fazia, interpretava o que estava feito. Aprendi com ele a refletir sobre o que realizava, o que sentia, atitude indispensável para tratar e ensinar.

Quando o 25 de Abril aconteceu encontrámo-nos na rua, naquele 1º de Maio inesquecível. Que grande e fraterno abraço nos abraçou! Com o Mestre e Amigo partilhava o ideal de justiça e liberdade. Na efusão dos tempos revolucionários a sua atitude era de uma refletida ponderação. Pôs o seu lugar de diretor à disposição, apesar de esse lugar nunca ter sido contestado. Libertou-se mais das tarefas burocráticas e consciencializou todos nós, seus colaboradores, da grande responsabilidade que nos cabia para tratar e impulsionar, no futuro, a saúde mental das crianças na sociedade nova que se avizinhava certamente com grandes mudanças e convulsões. Desde a fundação do Centro considerava erro grave a localização da clínica psiquiátrica infantil no hospital de adultos, condição que teve que suportar mas com que jamais tinha concordado. O seu sonho era fazer a clínica fora daquele hospital. Preparou mesmo o projeto do hospital psiquiátrico infantil, que esteva para se realizar mas que, como outros, ficou na gaveta. A propósito desse projeto aconteceu uma história que não resisto a contar.

João dos Santos pedia, como princípio, a opinião dos seus colaboradores. A nós, professores e educadores, solicitou um plano detalhado dos espaços destinados às atividades pedagógicas – terapêuticas, para fornecer aos arquitetos que estudavam o futuro edifício. Jovens como éramos e inexperientes nestas lides, andámos com os escritos de trás para a frente e lá demos as nossas opiniões, na prática pouco esclarecedoras. João dos Santos leu o relatório e reenviou-nos o texto. Não nos corrigiu nem chamou para criticar. Anotou, à margem, o seu comentário manuscrito “juntaram-se sete alfaiates para matar uma aranha, tentaram, tentaram, mas não conseguiram matá-la… ”

Algo envergonhadas mas risonhas fomos falar com ele e, no diálogo, conseguimos esclarecer ideias e satisfazer minimamente o pedido feito.

João dos Santos era muito duro quando os assuntos implicavam defeitos graves na qualidade do serviço. Tratava com humor e eficácia aqueles que naturalmente se podiam solucionar.

Como o projeto do hospital não se concretizou, incentivou os técnicos, nos tempos revolucionários, a procurar uma casa que servisse o fim em vista porque algumas estavam a ser oferecidas pelas vias oficiais.

A Câmara Municipal de Lisboa cedeu-nos um edifício, talvez do século XIX, pequena vivenda à beira do Tejo, na travessa da Praia, à Junqueira. A maioria dos técnicos considerou o espaço insuficiente para a clínica, que exigia internamento e hospital de dia.

Ele porém não desistiu daquela instalação que considerou “um tesouro” para desenvolver um serviço modelo circunscrito a um setor da infância na comunidade. Levou-se tempo a determinar o projeto e a preparar a casa para efetivar o trabalho. Mas nunca estivemos parados.

Rodeou-se dos técnicos que aderiram ao seu plano e que pôde deslocar, educadores, professores e assistente social e criou o Externato de Pedagogia Terapêutica, serviço onde se processou na prática a sua teoria para investigar, explicar e tratar o insucesso escolar de crianças inteligentes com perturbações de raiz emocional.

Tinha opinião que se devia começar por experimentar, atuar, avaliar, concluir. Criar um modelo para exemplificar e, depois, noutros lugares reproduzir. Assim nasceu a Casa da Praia que ainda existe, mas que os serviços de saúde oficiais não valorizaram. É hoje uma Instituição Privada de Solidariedade Social pelo esforço e luta dos que lá trabalham. João dos Santos deixou a obra descrita e teorizada no livro que escreveu “A Casa da Praia: O Psicanalista na Escola”.

A sua posição é de um cientista e investigador que cria e reflete sobre a prática. Recusou sempre as megalómanas medidas políticas de fazer, modificar e tantas vezes encerrar sem verdadeiramente avaliar.

Estive com ele na fundação e durante os primeiros dez anos da Casa da Praia. Com ele e com a sua filha Paula, parceira de trabalhos e de sonhos e com outros colegas que, alguns, jamais esquecerei.

Na Casa da Praia, João dos Santos manteve a sua constante atitude de nos deixar livres e atuantes na experiência com raízes pedagógicas nas técnicas Freinet, anteriormente implementadas no Centro Helen Keller e já aplicadas, inovadoramente, na clínica infantil. O estudo e a orientação terapêutica eram dele. Não estávamos presos nem enquistados a princípios rígidos mas, sob a sua direção e saber criávamos a nossa prática na realidade em que trabalhávamos. Construíamos o dia a dia da criança com a criatividade do sonho a compreensão e o tratar do sofrimento psíquico para depois do insucesso encaminhar e reintegrar no ensino regular.

João dos Santos fazia os seminários psicopedagógicos, dava a segurança do seu saber e autoridade, protegia, olhava, via, observava, deduzia, esclarecia e ensinava. Apoiava o nosso entusiasmo inovador, percebia a essência do nosso fazer, cientificamente justificava o funcionamento instituído. Era a presença serena, sólida e sábia. O que aprendi com João dos Santos faz parte do meu ser.

Continua ainda hoje comigo quando me extasio com a criatividade das crianças a pintar, a desenhar, a construir. Aprendi a perceber o significado escondido não consciente do que cada um nos diz, a sentir a tristeza que a agitação mascara, a experimentar e a partilhar com os meninos o prazer do brincar, do faz de conta, do jogo simbólico, essência do pensar e do aprender. Estou com ele quando levo as crianças a ler no espaço amplo que as rodeia e quando conto e reconto as histórias de encantar, as recrio e não me afundo no objetivo único de recuperar. Estou com ele quando atenta escuto a minha neta jovem que eu desejo que, como outros, encontre na vida “O Prazer de Existir”.

Sei que vivemos tempos sombrios mas acredito que o futuro contém o progresso mesmo que ele nos pareça longínquo.

João dos Santos foi um homem do futuro.

Lembro-o, assim como todos os que mais amei e já partiram quando, à noite, o luar se expande pela cidade e o casario de Lisboa escorre pelas colinas como um presépio, vista que contemplo sozinha da janela do meu quarto.

Entre os prédios, na planura do vale, ergue-se iluminada, branca a centenária torre da Igreja dos Anjos, sítio do seu nascimento. Sinto-a, vejo-a como símbolo da grandeza dos homens que não morrem e estão vivos pelo seu saber e humanidade.

Agosto, 2013, em Lisboa

Manuela Cruz

 
 
 
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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

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    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

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