Homenagem a João dos Santos

 2013 – Centenário do Nascimento

Professor Doutor Joao Gomes-Pedro2
João Gomes-Pedro*
Março de 2013

João dos Santos confiou-me a guarda pediátrica dos seus filhos, dos seus netos e, por intermédio deles, dos seus bisnetos.

Associadamente à confiança, João dos Santos ofereceu-me a lição que foi a sua vida.

Descobrir a Criança foi, também, o desafio que João dos Santos me legou.

O testemunho do que aprendi com João dos Santos, deixo-o nas linhas do meu texto, sabido que nas entrelinhas respira uma Amizade para sempre renascida.

= A DESCOBERTA DO BEBÉ =

Para os pais, descobrir o seu bebé é, certamente, o maior desafio de toda a sua vida.

Descobre-se o que se quer conhecer.

É nesse processo de descoberta que reside o mistério em muitas das expressões do destino de cada criança, mais tarde feita adulto, cidadão do mundo e recriador dum novo ciclo existencial.

Mercê de todas as incessantes descobertas científicas, os pais reconhecem, hoje, que este mistério é ganho ou perdido logo muito cedo, quando o bebé aparece e transforma, por exemplo, o que era, então, só casal, em família.

A descoberta do bebé representa, essencialmente, fazer a viagem pela diferença, identificando, logo às primeiras horas de vida, o temperamento, as forças, as fraquezas, as emoções, as competências desse pequeno alguém que tudo mobiliza, que todos influencia, que em todos transforma sonho em paixão.

Acredito que um dos principais papéis dos profissionais da saúde e da educação e, de uma maneira muito especial, do pediatra, é o de funcionar como guia, proporcionando aos pais essa viagem de um modo mais partilhado e mais competente e, deliberadamente também, de modo não intrusivo.

A consulta pré-natal e, sobretudo, a avaliação do bebé em presença dos pais, no período pós-natal imediato, são oportunidades de excelência para fazer apetecer aos pais e, eventualmente, aos outros membros mais chegados da família, os caminhos intermináveis dessa descoberta.

O bebé, mais do que uma referência social, é a referência afectiva da família.

No paralelo do conhecimento científico mais especializado em cada uma das dimensões do desenvolvimento infantil, é cada vez mais fundamentada e creditada a noção de que é no contexto de cada identidade, individuada e partilhada, que se constrói o vínculo da pertença e o sinal de coerência que essa pertença assume quando em cada passo da descoberta se reforça o afecto e se constroem as expectativas dum destino.

O primeiro passo da descoberta do bebé faz conhecer à mãe que dos dois bebés extremos que quase sempre a fantasia da mulher grávida constrói, ela, de facto, tem à sua frente o seu bebé real, mais ou menos bochechudo, mais ou menos risonho, mais ou menos comilão, mais ou menos dorminhoco, porém, o seu bebé, por quem se vai apaixonar e a quem vai dedicar parte da sua vida.

Cada mãe, cada pai tem à sua frente o bebé da sua vida para quem é preciso assegurar o melhor futuro com um sucesso creditável em toda a família.

Cerca de 50% da descoberta do bebé é assegurada pela observação atenta que os pais fazem à pele, às mãos e aos pés, aos sinais, à forma da cabeça, às reentrâncias do tórax, às curvas e saliências do dorso, a que se associam mais algumas descrições físicas que o médico formula depois da prática de algumas manobras, de algumas palpações e, também, da auscultação.

Porém, para os outros 50% da descoberta do bebé será necessário um alerta ainda maior, uma astúcia ainda mais apurada e, também, um conhecimento mais actualizado.

É com alguns aspectos deste conhecimento que desenvolverei esta reflexão em que, acima de tudo, pretendo deixar criada a vontade de tornar desejada e infinita a viagem de cada pai e de cada mãe, feita com o seu bebé.

Estes aspectos da descoberta têm muito a ver com a avaliação neuro-comportamental do bebé o que, de certo modo, representa a avaliação das suas forças, das suas competências e, também, das suas vulnerabilidades.

Reportemo-nos a alguns exemplos que são outras tantas expressões de vazios parentais e cujo preenchimento é a oportunidade de um encantamento continuado e partilhado.

Que espanto a força com que ele (ou ela) segura a cabeça quando o (a) ajudo a sentar! Que agilidade com que dá aqueles passos tão grandes e tão rápidos quando o pediatra segura nele (nela) de pé e o (a) deixa andar! Que destreza com que ele (ela) rasteja quando fica de barriga para baixo! Basta só ajudar um pouquinho empurrando-lhe os pés e quase que salta da cama quando o (a) seco depois do banho!

E que dizer do seu controlo, do modo como organiza os seus estádios de consciência!

Quando lhe falo, parece que já me conhece desde há muito!

Quando uma mãe brinca com o seu bebé despido poderá passar a assinalar exactamente o mesmo que o pediatra «descobre».

Durante o tempo de cada «viagem» que, habitualmente, é chamada de observação ou avaliação do recém-nascido, o bebé muda de estádio de consciência (sono, acordado, agitado, choro) uma meia dúzia de vezes. Porém, poderá mudar de estádio 12, 20, 30 ou mesmo 40 vezes no mesmo período de tempo, enquanto que um bebé filho de uma mãe tóxico-dependente poderá mesmo chegar às 50 ou 60 mudanças!

Porém, ainda mais que o número de mudanças de estádio de consciência, o modo como o bebé o faz, «aguentando» mais ou menos o seu controlo, o modo como tenta organizar-se, o modo como lida com as suas próprias forças e com as intervenções de quem está com ele, informam sobre a sua resiliência e orientam para a conduta a ter agora, amanhã, daqui a meses, daqui a anos!

Durante as manobras da avaliação tal como nas manobras de vestir, despir, ou dar o banho que os pais desempenham em cada dia, o bebé aguenta como pode o stress que as sucessivas mudanças de ambiente vão desencadeando.

A expressão deste stress são os sustos, os tremores, as mudanças da cor da pele.

Contar e estar atento ao ritmo destes sinais, faz conhecer o modo como o bebé aguenta a adversidade, como ele se equilibra ou desagrega, como é mais ou menos resistente ou mais ou menos vulnerável a alguns estímulos ou a algumas circunstâncias do seu meio.

Por último, em cada viagem, junto aos seus mais significativos, cada bebé comunica e interage numa via dupla de afecto e cumplicidade em que sinaliza o que quer, quando quer e como quer.

O bebé «dá a vez» na comunicação com a mãe e com o pai reconhecendo as rotinas e as especificidades de cada uma dessas interacções sabendo exactamente que a melodia se alterna e que a batuta tem de ser, também, mutante em função do parceiro de comunicação.

Acima de tudo, o bebé sabe que o objectivo é o êxtase na perduração de dois olhares encontrados ou de dois sorrisos trocados, através de um romance sistematicamente reencetado e porventura nunca terminado no colo apetecido.

Com a descoberta do bebé, aprendemos a descobrir o outro, porventura também um pouco de nós.

Talvez por isso, com a descoberta do bebé que nos é querido e, por isso, especial, renascemos também como pessoas.

João Gomes-Pedro

 
*Professor Doutor João Gomes-Pedro médico pediatra

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