A Força das Perguntas

 
ANTONIO NOVOA MEDIUMAntónio Nóvoa *
6 de Setembro de 2013 **
 

 João dos Santos é uma presença luminosa do século XX. A sua acção nos domínios da saúde e da educação marca o nosso pensamento mais inteligente, e mais sensível, sobre a infância.

Os trabalhos deste Centenário, notavelmente dinamizados pelos seus filhos, Paula Santos Lobo e Luís Grijó dos Santos, revelam bem a amplitude, a largueza e a grandeza, daqueles que João dos Santos tocou pelas palavras, pelos gestos, pela relação.

É uma teia extraordinária de pessoas, de cumplicidades, de afectos, de discípulos no sentido mais nobre do termo. Sim, João dos Santos foi um mestre, um mestre com quem estamos em diálogo neste momento, ao falar dele, ao falar com ele.

Confesso a minha impossibilidade de abranger um leque tão rico e variado de temáticas, como aquelas que fazem parte da sua vida. Fico-me, pois, por uma das dimensões que atravessa o seu trabalho: a educação, a educação e a escola. Claro que é uma das facetas, e apenas uma, do trabalho de João dos Santos, mas é onde me sinto mais capaz de falar com ele.

Depois de muitas hesitações, decidi tratar o assunto com base nos textos que publicou no Jornal da Educação entre 1978 e 1982 e que foram, no essencial, republicados no segundo volume dos Ensaios sobre Educação. São 37 crónicas, que abrem com Deixem as crianças roubar e fecham com As feiras da vida e os enlatados.

São crónicas, escritas por um fabuloso “contador de histórias” que, assim, respondeu ao pedido do seu filho: “Oh! Pai, porque é que não escreve para as pessoas?”.

João dos Santos escreveu para as pessoas estes textos, apontamentos, fragmentos, lições, provocações permanentes de humor e inteligência.

Já não há educação… é o título da crónica de Novembro de 1979, que repete os lamentos de todas as gerações em todos os tempos em todos os lugares. E conta que um dia o Chico sentou-se no carro eléctrico, num dos lugares logo à entrada.

Uma senhora ficou de pé e não achou bem que lhe não cedessem o lugar. E comentou:
– Já não há educação!…

Dada a insistência da senhora no comentário, o Chico saiu-se com esta:
– Oh! Minha senhora, educação há, o que não há é lugares!

Nestas crónicas, impressiona esse exercício permanente de interrogação, de questionamento, de procura, a que João dos Santos se dedica. Por isso, chamei a esta minha intervenção A força das perguntas.

Se não sabe porque é que pergunta? João dos Santos sabe. E está ciente do seu saber. Mas reconhece que o outro também sabe. E que é nesse diálogo que se cria conhecimento, que se cria uma verdadeira relação educativa.

Através das perguntas que ele nos faz, procurarei partilhar convosco três ideias e trazê-las para os dias de hoje, respeitando assim o programa deste Congresso: João dos Santos no século XXI.

Faço-o a partir de uma estrutura básica, iniciando com a instituição escolar, e depois com as coisas e as pessoas que a definem, isto é, com a aprendizagem das coisas e com a importância da relação entre as pessoas: a instituição escolar; a aprendizagem; a relação.

A instituição escolar

A referência mais sistemática destas 37 crónicas, iluminada a partir de diferentes pontos de vista, mas sempre presente, é a preocupação com a excessiva institucionalização das crianças.

Logo na primeira crónica:

Interessa que todos nos entendamos sobre como criar o ambiente propício ao desenvolvimento infantil sem cair na facilitação de empurrar para as instituições burocráticas, toda a responsabilidade de criar a criança (criança é o que se está a criar)… e de a educar sem ficar à espera que o ensino resolva todos os problemas da educação; sem ficar apegado à fórmula dos que apenas resmungam que se foram “os bons tempos”… Interessa saber o que cada um e todos, a família, a escola e a comunidade, podem fazer por todos!

E depois, uma e outra vez, a crítica ao “facto consumado da institucionalização de uma rede de estabelecimentos sofisticadamente repressivos”, a crítica aos “administradores do ensino”, a crítica à burocracia do ensino, a defesa de uma educação que deve ser “exigência e direito de todos, para além dos hospitais, das maternidades, das creches, das escolas”…

Mas é talvez na crónica de Novembro de 1978 que João dos Santos leva mais longe esta crítica, escrevendo:

A tendência actual de instituir uma educação oficial a partir do berço, conduz inevitavelmente à violência: da sociedade contra as crianças, dos adultos contra a criança, das crianças contra os adultos, da criança contra a Escola, da Escola e das autoridades contra a criança… (…) É violência porque destitui os pais e a sociedade da sua função educativa essencial na relação humana informal.

João dos Santos faz parte de uma geração que começa a compreender os perigos de tudo querer fazer dentro da escola, de tudo querer resolver dentro da escola.

É natural o seu encontro com Ivan Illich que, ao longo da década de 70, havia elaborado propostas nesse sentido, com o propósito de reforçar o papel das famílias e da sociedade na educação:

É preciso construir uma trama de possibilidades educativas através da dinamização de redes.
A educação para todos é educação por todos.
Não é encerrando as pessoas em instituições especializadas, mas antes mobilizando toda a sociedade, que se terá uma educação popular.

Esta questão é uma das mais importantes para o futuro da Escola. Como evitar a deriva de uma Escola-faz-tudo? Excessiva? Transbordante? Como construir, em alternativa, um Espaço Público da Educação, no qual as escolas ocupam o seu lugar, mas onde há lugar também para muitas outras instituições: famílias, associações, museus, municípios, grupos culturais, comunidades, igrejas, centros de ciência, etc. etc. etc.

Foi disto que nos falaram, cada um à sua maneira, homens como Ivan Illich, e João dos Santos, e mais tarde Paulo Freire, em particular quando avançou com a ideia da “cidade educadora”, e tantos outros.

É disto que precisamos hoje: tomar consciência dos limites da Escola e abrir, assim, espaço para um reforço das responsabilidades sociais no campo da educação, para uma aprendizagem que deve fazer-se “não só nos edifícios escolares mas também”, como diz João dos Santos, “nas casas e praças públicas, nos campos e nas praias” (Outubro de 1980).

A aprendizagem

“Aprender a Ler”: foi este o título escolhido por João dos Santos para as suas crónicas. Aprender a ler… a ler o mundo, e não apenas as palavras.

São muitas as passagens sobre este tema, mas talvez valha a pena começar por duas “provocações” que nos desassossegam.

A primeira surge na crónica de Junho de 1980 quando escreve: “Ninguém ensina ninguém. Cada um aprende com o que lhe é fornecido pelo ambiente natural e humano”. E conta uma história, sempre uma história para cada caso.

Uma criança andou a apanhar fósseis e pedrinhas e trouxe-os para mostrar ao pai e para pedir para continuar; o pai respondeu: “Pois bem, mas agora vais mas é para casa para estudar ciências” (!) (Setembro de 1978)

A segunda provocação é feita várias vezes, quando diz que, ao ingressar na escola, a criança já adquiriu, no essencial, todas as aptidões que caracterizam o ser humano (Março de 1979).

E escreve:

Esta é uma afirmação que faz sempre sorrir os adultos convencidos de que têm mais para ensinar do que para aprender.

João dos Santos explica-nos que a criança aprende a ler na natureza, nas pessoas e nas coisas, antes de chegar à escola. Explica-nos como a criança aprende a andar, e a falar, e a ler nos olhos dos outros. E depois?

Depois, recordo-me eu dessa história que nos conta Philippe Meirieu quando descreve os hábitos dos professores de avaliarem os alunos, quase sempre com base no preconceito (que era, aliás, ensinado e teorizado nas escolas do magistério!) de que em cada turma deveria haver 1/3 de alunos bons, 1/3 de alunos maus e 1/3 de alunos assim-assim. Diz-nos Philippe Meirieu, numa observação que certamente agradaria a João dos Santos: “Ainda bem que as crianças não aprendem a andar ou a falar na Escola, pois, caso contrário, 1/3 de alunos andaria bem, 1/3 de alunos não andaria e 1/3 de alunos andaria assim-assim”!!!

Claro que estas duas provocações escandalizam os “tradicionalistas” que nos dominam e que nos asfixiam com um pensamento fechado no passado. João dos Santos não lhes perdoa e escolhe palavras fortes para dizer o que lhe vai na alma:

Desde que, ainda no berço, se deixou de mamar na teta da mãe para se ser mamado pela Nestlé, está tudo condicionado para o enlatado, no campo da alimentação e no da cultura (Outubro de 1978).

João dos Santos já não viveu a revolução digital, mas pressentiu-a, e deixou alguns apontamentos sobre as suas consequências para a aprendizagem. Recentemente, ao ler o último livro de Michel Serres, justamente sobre este tema, recordei-me dele, logo na página de abertura:

Antes de ensinar o que quer que seja a quem quer que seja, seria bom que, pelo menos, o conhecêssemos. Quem é que hoje se apresenta na escola, no liceu, na universidade?

Michel Serres chama ao seu livro A polegarzinha, a geração do pequeno polegar, e diz-nos que houve três grandes revoluções na história da humanidade:

– a primeira, foi a invenção da escrita, e durou vários milénios;

– a segunda, foi a descoberta da tipografia e do livro impresso, e já dura há cinco séculos;

– a terceira, é a revolução digital, que dura há poucas décadas mas já mudou quase tudo na nossa vida.

E afirma:

Sem que nos tenhamos apercebido, um novo ser humano nasceu, num período de tempo muito curto, aquele que nos separa dos anos 1970.

Que falta nos faz, hoje, João dos Santos para nos ajudar a alcançar, a entender este novo ser humano, que vive ao nosso lado, mas cuja compreensão nos está a escapar…

Fiquemos com Michel Serres:

Estes alunos habitam o virtual. As ciências cognitivas mostraram que o uso da Teia, a leitura e a escrita nos dedos das mensagens, a consulta da Wikipedia ou do Facebook não excitam os mesmos neurónios nem as mesmas zonas corticais que o uso do livro, da ardósia ou do caderno.

Estes alunos podem manipular diferentes informações ao mesmo tempo. Não conhecem, não integram e não sintetizam como nós, os seus ascendentes. Eles não têm a mesma cabeça.

Por celular, acedem a todas as pessoas; por GPS, a todos os lugares; pela Teia, a todo o saber. Eles habitam um espaço topológico de vizinhanças enquanto nós vivíamos num espaço métrico, marcado por distâncias. Eles não habitam o mesmo espaço.

E, continua Michel Serres, esta “incompreensão” está a criar uma falha entre as nossas concepções de educação e a forma como estes alunos aprendem:

No interior desta falha, estão os jovens que pretendemos educar com base em lógicas e modelos que datam de um tempo que eles já não reconhecem: edifícios, recreios, salas de aula, anfiteatros, campus, bibliotecas, laboratórios, e até conhecimentos… lógicas e modelos que datam de um tempo e que pertencem a uma época em que os homens e o mundo eram o que já não são mais nos dias de hoje.

Os nossos jovens não pensam como nós, não sentem como nós, não comunicam como nós e não aprendem como nós. Vivemos um tempo de profunda revolução na aprendizagem: o nosso problema já não é apenas a informação, mas a inteligência (de inter-ligar), a comunicação; o nosso problema já não é apenas o lugar, mas as redes, já não é o consumo passivo de conhecimento, mas a sua criação.

Tudo temáticas que preocuparam João dos Santos. E é por isso que a sua obra continua tão útil para pensar o século XXI.

A relação

Na Escola tudo se pode resumir a duas dimensões: a aprendizagem das coisas e a relação entre as pessoas, essa relação humana que está no coração de todo o trabalho de João dos Santos.

Neste ponto, o nosso autor alarga-se nas provocações, desde a primeira crónica. Conta-nos que um dia recebeu um postal do senhor director do ciclo quando o filho mais novo andava no 6.º ano: o filho havia sido expulso da aula de trabalhos manuais por estar a brincar. E escreve:

Se o assunto é assim tão sério, deviam conversar comigo, para me explicar como e porquê eu lhe devo dar a carga de tareia que o tom seco do postal sugere.

Tive ainda vontade de dizer, mas calei-me a tempo para não ofender: “Eu, quando o meu filho me faltar ao respeito, chego-lhe… e os senhores? Ficam-se? Só mandam o postal? (Junho de 1978)

Em João dos Santos está sempre a recusa da relação burocrática, da engrenagem da escola (como ele diz), dos tecnocratas do ensino.

Ele conhece, melhor do que ninguém, a importância da relação humana, e da relação humana na educação. Numa crónica notável, de Março de 1980, resume a pedagogia numa frase: Não reprimam as crianças, ajudem-nas a reprimir-se.

O educador intuitivo dá liberdade à criança para se mover e parar, para falar e silenciar.

Mas, dirão os pais, não se pode deixar que a criança faça tudo quanto lhe apeteça.

Como não recordar a frase de Jean-Jacques Rousseau que tem servido, ao longo dos séculos, para arrasar os pedagogos, os filhos de Rousseau: “A criança só deve fazer aquilo que quer”. Mas esquecem-se os críticos da pedagogia de citar o que Rousseau escreve logo de seguida:

A criança só deve fazer aquilo que quer; mas deve querer apenas aquilo que vocês querem que ela queira; não deve dar um passo sem que vocês o tenham previsto; não deve abrir a boca sem que vocês saibam o que ela vai dizer. Deixem que o vosso aluno acredite ser sempre ele o mestre, quando, na verdade, são sempre vocês que o são.

Não vou, agora, analisar outros problemas, bem complexos, que a citação de Rousseau levanta. Mas quero insistir, isso sim, na posição de João dos Santos: “Não é necessário reprimir as crianças, é só necessário que as ajudem a reprimir-se. Para que elas sejam inteligentes e criativas”.

Claro que tudo isto é incompreensível para os “autoritaristas” que não percebem nada do que é a autoridade em educação. Por isso, João dos Santos dedica tanto tempo a explicar os temas da liberdade e da autoridade.

Tudo há-de ser feito, sempre, num quadro de autenticidade. Somos gente, caramba! E daqui decorre tudo o que vale a pena aprender com estas crónicas, talvez autobiográficas, de quem soube ouvir, ouvir e conversar, ouvir e conversar com as crianças, e connosco, e nesta conversa tornar-nos mais atentos e mais humanos.

*       *       *

Aqui ficam três apontamentos, necessariamente breves, razões para revisitar hoje a obra de João dos Santos.

– Quando nos explica a necessidade de pensar a educação para além da instituição escolar e de valorizar todas as possibilidades educativas que existem na sociedade.

– Quando nos avisa sobre a importância de compreender as novas dinâmicas de aprendizagem, ligadas à vida das crianças, às suas maneiras próprias de conhecer, de sentir e de comunicar.

– Quando nos diz que “o saber aprende-se com a educação que é a relação humana”, a compreensão do outro, o compromisso com o outro.

Nele, está sempre a força das perguntas, a recusa das “respostas feitas”, “prontas”, “evidentes”, a recusa das certezas definitivas, das soluções que não nascem da dúvida, da reflexão e da partilha.

Há alguns anos, dei a um livro meu sobre história da educação, um estranho título: Evidentemente. Estranho, sim, mas fácil de explicar: em educação, tudo o que é evidente… mente! As evidências são mentirosas.

Encontro agora, numa das crónicas de João dos Santos, a mesma crítica às “evidências”. João dos Santos pergunta e volta a perguntar, pergunta-se, interroga-se, deixa nas perguntas toda a sua sensibilidade, toda a sua autenticidade. Cita Jacob Rodrigues Pereira: “toda a inteligência passa pelos sentidos”. E fez-me recordar o elogio de António Lobo Antunes no Doutoramento Honoris Causa de Júlio Pomar: “este homem tem os sentidos dentro da inteligência”.

Também João dos Santos tinha os sentidos na inteligência:

A Escola deve ser o lugar onde todas as crianças de todas as famílias se possam sentir bem acolhidas, qualquer que seja o seu cheiro, forma, encadernação ou linguagem (Março de 1981).

O trabalho de João dos Santos vai muito muito para além do que aqui vos trouxe. É um homem que esbate fronteiras, que se situa na saúde, na educação, na ciência, na cultura, que fala com as pessoas e que chega às pessoas, muito para além dos profissionais e dos técnicos.

João dos Santos anima-nos nestes tempos de desânimo e de retrocesso. Anima-nos e inspira-nos. Com as suas palavras. Com o seu exemplo. E diz-nos, quase à maneira de Ortega y Gasset:

A arte de viver consiste em saborear o mel da vida, mesmo quando a adversidade nos atinge (Maio de 1980).

Saibamos saborear este mel. Mesmo na adversidade. Saibamos ser livres. Mesmo na fatalidade dos tempos que nos couberam. Saibamos honrar este legado, absolutamente notável, e projectá-lo no futuro.

 
 
 
 
 
 
*     Professor Doutor António Sampaio da Nóvoa
       Professor Catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, Reitor da Universidade de Lisboa, 2006-2013
     
**   Transcrição da conferência proferida pelo Professor Doutor António Sampaio da Nóvoa no congresso “João dos Santos no século XXI”, 6 de Setembro de 2013

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    Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos em conversa

    Clique na seguinte ligação para para visualizar este vídeo do Instituto de Tecnologia Educativa – RTP (1975) A Escolinha de Arte de Cecília Menano – com Cecília Menano, João dos Santos e Maria Emília Brederode Santos, que foi muito generosamente disponibilizado pelo Dr Daniel Sasportes (19 minutos). [Clique nesta ligação]

     


  • Programa IFCE no Ar, Radio Universitária

    Entrevista sobre o andamento do curso à distância “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”

    Entrevista gravada com a coordenadora do curso “Introdução ao Pensamento de João dos Santos”, Professora Patrícia Holanda da Linha de História da Educação Comparada da UFC (Universidade Federal do Ceará), com o Doutor Luís Grijó dos Santos (filho de João dos Santos), e a coordenadora pedagógica do curso Professora Ana Cláudia Uchôa Araújo da Directoria da Educação à Distancia do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). A entrevista foi realizada pelo jornalista Hugo Bispo do Programa IFCE no Ar em 3 de Novembro de 2016.

    Para ouvir a gravação desta entrevista clique nesta ligação.

     


     

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